"Capitães da Areia": esta não é uma história só de 1937
No trapiche abandonado moram onze rapazes e uma rapariga, com idades entre os 14 e os 27 anos. O trapiche, diz-nos o dicionário, é um armazém. Mas aqui o trapiche é casa. É o sítio onde estes miúdos vivem - longe da família, da escola, da sociedade. À margem. E é por isso que num primeiro momento este é um espetáculo sobre a casa. Ou sobre a falta de uma casa. "Casa onde é onde estás defendido do mundo." E se não há quem te defenda?
Margem partiu de um convite de Madalena Wallenstein, programadora da Fábrica das Artes do CCB, ao coreógrafo Victor Hugo Pontes para fazer um espetáculo com Capitães da Areia, de Jorge Amado. "Pensei logo que não queria fazer uma adaptação do livro para uma peça de teatro. Queria pegar nos temas que são tratados no livro e perguntar quem seriam os capitães da areia hoje", explica Victor Hugo Pontes. "E percebi que eles estão institucionalizados e se não estivessem estariam na rua, como os do livro."
Victor Hugo pediu ajuda a Joana Craveiro para a construção do texto e juntos fizeram um trabalho de campo em duas instituições - a Casa Pia, em Lisboa, e o Instituto Profissional do Terço, no Porto. Afinal, como se diz no palco, "esta não é uma história só de 1937". "Conhecemos jovens e crianças e fomos fazendo workshops, entre o lado físico e um lado mais pessoal, fazendo perguntas." Como: onde estão os teus pais? , lembras-te da primeira noite aqui?, do que é que tens medo?, qual é o teu sonho?
Finalmente, em setembro do ano passado realizaram uma audição no Porto para escolher os intérpretes e, a partir, daí as suas próprias histórias e a sua visão sobre os Capitães da Areia passou a fazer parte do espetáculo. "Foi assim construído nestes três níveis, nestas três camadas, tentando falar essencialmente dos temas que o livro levanta", mas sempre em ligação com as histórias recolhidas nas instituições e com histórias dos ensaios e de como aquele grupo de miúdos se encontrou para ler, em voz alta, o livro de Jorge Amado.
"A maioria deles assume que não lê os livros até ao fim. Também percebi que leem muito mal em voz alta. Mas também foi bom ir percebendo que, a partir de certa altura, eles estavam a gostar do livro e queriam saber o que ia acontecer a seguir. Quando eles dizem que há partes de engolir em seco são mesmo expressões que vêm dos comentários que eles faziam." Houve quem ficasse fascinado com a liberdade daquele grupo de miúdos a viver na rua. Quem quisesse ser como Pedro Bala. E quem se emocionasse com as mortes que acontecem no romance.
Hugo, de 14 anos, não tinha lido o livro antes mas acabou por se render àquelas histórias. E às outras, que ouviu dos jovens portugueses: "Achamos que não existem, que são inventadas por escritores, mas afinal há histórias reais até piores, são assustadoras e muitas vezes nós não vemos mas são a realidade do nosso país", conta. "Esta não é a nossa história. Mas poderia ser", dizem em palco.
No elenco só há dois elementos que não foram escolhidos por audição - o ator João Nunes Monteiro, de 25 anos, e o bailarino André Cabral, de 27, que já são profissionais. Todos os outros têm até 20 anos, uns não têm qualquer formação artística, outros são ou foram alunos de dança ou de teatro. "Interessava-me que fossem muito distintos uns dos outros, queria corpos e expressões variados", explica o coreógrafo.
Tal como no livro, neste trapiche só há uma rapariga. "Ela acaba por representar todo o universo feminino (a namorada, a mãe, a amiga). Mas ao mesmo tempo, para se integrar no grupo, ela tem que se tornar quase um deles, é uma maria-rapaz." Para Nara Gonçalves, de 14 anos e uma das que já tinha lido o livro e se tinha apaixonado pelos Capitães da Areia, a experiência tem sido "incrível". Em certos momentos ela é Dora e noutros momentos cita a canção Haiti, de Caetano Veloso, lembrando que "pobres são como podres". E garante: "Eles nunca me deixam de fora em nada."
Essa foi também uma exigência de Victor Hugo Pontes: "Isto é um coletivo, não é uma soma de individualidades." Para além dos ensaios após as aulas, nas férias de natal estiveram a viver todos juntos no Centro de Criação de Candoso, em Guimarães. "Cozinhávamos, dormíamos, lavávamos a loiça, juntos, trabalhávamos o dia todo juntos. Foi muito duro mas foi muito forte. Criaram-se ligações."
A música original dos Throes + The Shine traz para o palco "sonoridade urbana e as origens africanas", o "pulsar" ideal para os corpos e a energia destes jovens. Mas não se deixem iludir pela vontade de dançar. Este é um espetáculos sobre casa, sobre o amor, sobre dançar. Mas também é sobre o medo, sobre solidão. Sobre a morte. E como sobreviver.
Margem
Até 1 de fevereiro
Centro Cultural de Belém, Lisboa
Bilhetes: 3,5 a 6 euros