Bibliomóvel: há dez anos a anunciar livros com uma buzina
Chove a cântaros. Quando Nuno Marçal estaciona o Bibliomóvel nos Cunqueiros, não há ninguém na rua nem mesmo à porta do café. Nuno buzina três vezes, abre a porta lateral da carrinha, desenrola um pequeno alpendre, coloca um degrau de madeira no chão para facilitar a vida a quem quiser entrar. A biblioteca móvel de Proença-a-Nova está aberta mas ninguém aparece. Dentro do café, Maria Ludovina, Maria do Carmo e Maria Alice estão sentadas a uma mesa, pondo a conversa em dia. "Já cá está?", surpreendem-se quando Nuno entra com as revistas do tricot e das receitas de cozinha. "Mostre lá."
Nuno traz também o Correio da Manhã e um jornal desportivo que entrega a um grupo de homens, noutra mesa. Depois de se pôr a par das novidades das malhas, Ludovina enfrenta a chuva para vir até à carrinha. Tem um livro de Nora Roberts para devolver: Para Roberta. "Gostei muito. Gosto de livros com histórias de amor", diz. Traz o livro dentro de um saco plástico para que não se molhe, e espera que o bibliotecário lhe dê outro livro para ler nos próximos quinze dias. "O Nuno é que sabe escolher livros para mim. Há dias em que mais vale ler para não pensar. A gente aqui também não tem outra distração..."
Dentro da carrinha não chove. Apertamo-nos para receber Gracinda Dias, uma das utilizadoras habituais do Bibliomóvel em Cunqueiros. Traz três livros para devolver, vai levar mais três. "Gosto muito de ler, desde sempre", justifica-se Gracinda, lembrando os volumes todos das Seleções do Reader"s Digest que trouxe de Angola. "Televisão é para ver as notícias e pouco mais, prefiro ler. Criei cinco filhos e lia noites inteiras." John Grisham, Elizabeth Adler, Noah Gordon, Gracinda devora tudo. Há uns tempos pediu a Nuno que lhe trouxesse tudo o que tivesse de Fernando Namora, um dos seus autores preferidos. "Também gosto muito do Eça, estava muito à frente do seu tempo. Mas não gosto muito do Júlio Dinis, é dramático de mais."
Está na hora de partir para a aldeia seguinte. Nuno vai ao café buscar os jornais e lá vamos nós, por curvas e contracurvas, com a bandeira de Portugal no tablier. Nuno Marçal conhece bem estes caminhos que percorre desde 2006. Trabalhava na Biblioteca de Proença-a-Nova mas andava desmotivado e, quando após os grandes incêndios de 2003 surgiu esta oportunidade de criar uma biblioteca itinerante, integrada nos projetos de combate à pobreza e ao isolamento na região, Nuno fez tudo para que se tornasse real. O Bibliomóvel é da responsabilidade da Câmara Municipal de Proença.
"Nas primeiras vezes, as pessoas achavam que eu ia vender alguma coisa", lembra. Assim como aparecia a carrinha do padeiro ou do peixe fresco, vinha uma carrinha com livros. "Mas depois, aos poucos, as pessoas foram percebendo que eu não queria vender nada. E foram ganhando confiança para entrar aqui, ver os livros, escolher alguns."
Com pequenos textos e muitas fotografias, Nuno Marçal vai registando as "crónicas de um bibliotecário ambulante" no blogue O Papalagui, que existe desde 2006. É impressionante ver as imagens antigas, descobrir que ainda ali havia crianças e muita gente à espera da biblioteca. "A chegada da carrinha era um acontecimento."
Ao longo destes dez anos, Nuno foi conhecendo toda a gente, passou a ir a algumas aldeias porque recebeu pedidos especiais - "então, não vem cá?" -, deixou de ir a outras porque os únicos utilizadores que ali tinha foram-se embora ou morreram. "É uma zona muito desertificada. Os mais novos não querem ficar. E os velhos têm poucas coisas para fazer."
Nuno leva-lhes livros e companhia. Não se trata só de trocar livros, tem de haver tempo para conversar. Ele pergunta-lhes pelas doenças, pelas batatas, pela família; eles querem ver fotografias do filho de Nuno e convidam-no para ir à adega provar um vinho. "Já não sou um funcionário. Sou o Nuno da carrinha ou o Nuno dos livros. As pessoas sabem em que dias é que venho, estão à minha espera mais ou menos àquela hora. E isso é importante. Criou-se uma relação."
Além dos livros (mais de 800 disponíveis, de Isabel Allende a José Saramago, de Paulo Coelho a Almeida Garrett) e jornais, a carrinha tem também um computador com ligação à internet que todos podem usar. E além de conversar Nuno está disponível para ajudar a preencher impressos e a ultrapassar aquelas pequenas burocracias que tanto complicam a vida de quem mora longe dos grandes centros. "Há aqui zonas que nem rede de telemóvel têm", explica Nuno. "Não sinto que se leia pouco hoje em dia, mas os jovens leem outras coisas, noutros formatos. E as bibliotecas deveriam estar mais atentas a isto", diz o bibliotecário.
A chuva dá tréguas em Pedras Brancas. Uns raios de sol furam por entre as nuvens. O Bibliomóvel estaciona junto a um pequeno largo, Nuno buzina, mas ninguém aparece. "O que se terá passado? Vamos ver." Se Maomé não vai à montanha... Lá vai a carrinha rua acima até às casas dos dois utilizadores habituais da biblioteca naquela aldeia. Aparece a dona Ilda do meio da horta. "Já cá está? Vou buscar o meu livro." Traz O Coro dos Defuntos, de António Tavares, o livro que ganhou o prémio Leya em 2015. "Mas esta semana não levo nada que ainda lá tenho outro para acabar." E, depois, explica: "Sempre gostei muito de ler, não tenho é tempo. E a cabeça também já não ajuda." Também lá está António, que entrega o 1984, de George Orwell, e leva Um Espião Perfeito, de John Le Carré. Vive sozinho e tem sempre um livro para o acompanhar. Como a volta hoje está a terminar, é ele também que fica com os jornais do dia para ler ao serão. "E agora vou para dentro que vem aí a chuva outra vez..."