Beleza e tragédia à beira-mar
Manchester-by-the-Sea é uma cidade costeira de Massachusetts reputada pelas suas praias e belas vistas. A comunidade local, dependente da atividade piscatória, tem com o mar uma relação que molda não só a vivência coletiva como os modos de pensar e sentir. Assim acontece nos lugares onde a existência é simples e bela, na comunicação direta com a paisagem. Kenneth Lonergan, que a tomou como título da sua terceira longa-metragem, parece ter encontrado na especificidade marítima desta localidade a brisa ideal para serenar um prodigioso melodrama. A partir de hoje nas salas portuguesas, e com nomeações em cinco categorias dos Globos de Ouro - melhor drama, melhor ator (Casey Affleck), melhor atriz secundária (Michelle Williams), melhor realizador e argumentista (ambos a mesma pessoa, Lonergan) -, este é certamente um filme que vai marcar o início do novo ano. Não só por isto, entenda-se. Mas já agora fiquemos atentos aos resultados que sairão da gala a decorrer no próximo dia 8...
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Depois de Podes Contar Comigo (2000), que salienta a forte relação entre um tio problemático e um sobrinho que nunca conheceu o pai, e Margaret (2011), a história de uma jovem angustiada pelo sentimento de culpa, Manchester by the Sea vem fazer colidir os aspetos centrais de cada um desses filmes anteriores do norte-americano. Veja-se, também aqui temos um tio colocado num certo contexto de paternidade para com o sobrinho, a que se soma um estado de penitência interior, inicialmente secreta, que lhe apaga a expressividade do rosto. Casey Affleck é Lee Chandler, esse homem solitário, esquecido do sorriso, que vive em Boston ganhando a vida como porteiro, a fazer todo o tipo de trabalhos - preferencialmente os que impliquem menos contacto com pessoas, e as tarefas mais repugnantes. Por isso o vemos, no início do filme, numa ininterrupta sequência de desentupimento de canos... Ao receber a notícia da morte do irmão, será forçado a regressar à terra natal, justamente Manchester-by-the-Sea, e enfrentar novas responsabilidades, além do próprio passado. À sua guarda, devido aos problemas de álcool da cunhada, o sobrinho de 16 anos (Lucas Hedges) suportará com ele o luto e procurará restituir qualquer coisa que se pareça com a normalidade quotidiana, tão particularmente agradável naquela região costeira. Tal como nos dias de infância do sobrinho, passados no barco do pai, os dois estão agora juntos numa espécie de jangada à deriva. E, no entanto, é ainda a tragédia pessoal de Chandler que não deixa de lhe ocupar o semblante e a postura esquiva, numa quase inabilidade para estar socialmente.
O passado deste homem revela-se a espaços, em flashbacks que, como peças de um puzzle, vão construindo o retrato familiar, onde a sua ex-mulher (uma sempre estimável Michelle Williams), as duas filhas e mais um bebé recém-nascido representam a felicidade de um tempo algures interrompido. Esse puzzle vai completar-se numa devastadora cena, adornada pelo lamento melódico do Adagio de Albinoni, que fundamenta diante do nosso olhar o grande flagelo íntimo de Chandler. E, de facto, não havia como imaginar que fosse tão traumático... Somos tomados de assalto por uma revelação dolorosíssima que, acima de tudo, confirma Kenneth Lonergan como um brilhante argumentista (convém, aliás, sublinhar que foi nessa qualidade e na de dramaturgo que começou por se destacar, antes da estreia na cadeira de realizador).
Uma interpretação decisiva
Na sua profundidade dramática, Manchester by the Sea não corresponde, contudo, à mais prosaica definição do género. Há um detalhado labor narrativo que transfigura as bases do drama: Lonergan tem olho, e uma clara simpatia para com as formas desajeitadas da interação humana, permitindo-se usá-las, num genuíno sentido humorístico, como componente do quadro trágico. A comicidade vem à superfície mesmo nos momentos mais inesperados, com especial enfoque nos diálogos entre Chandler e o sobrinho, um adolescente na fase diletante da experiência amorosa, para quem tudo se resume aos assuntos hormonais (algo que o leva a manter dois namoros em simultâneo...). Manchester by the Sea faz valer o espírito de honestidade neste traço humanista, conquistando o espectador pelo despojamento de quaisquer sinais de ampliação da realidade. A sua grandeza manifesta-se precisamente nessa justa medida, comparável com a vida à beira-mar.
Para todos os efeitos, Casey Affleck é a peça fundamental do filme. Não o víamos em forma há algum tempo - digamos, desde O Assassínio de Jesse James pelo Cobarde Robert Ford (2007), a sua primeira e única nomeação para o Óscar, num papel secundário. Consta que Matt Damon, produtor de Manchester by the Sea, teria sido a primeira indicação para o lugar do protagonista, tal como já tinha colaborado com Lonergan em Margaret, mas recusou por outros compromissos. E a verdade é que esta representa a grande oportunidade de Affleck, a sua melhor interpretação até hoje, de uma eloquente tristeza. Recaiam sobre ele os louros, por favor.