As cidades são sofá, mesa e tela deles. Eis os Urban Sketchers
Hoje é o dia do desenhador. Fomos conhecer uma dentista, uma psicóloga, uma engenheira química, um professor é uma arquiteta que fazem do desenho um hobby. E uma ponte para ver o mundo com outros olhos
Ouvi-los, um a um, e achar que são todos felizes. Ana, dentista, quatro filhos, três consultórios, aulas na universidade, doutoramento, escultora de sorrisos. Teresa, psicóloga infantil, consultório, a casa de pantanas em pinturas, repete "eu não sei desenhar"; João, ilustrador e professor, desenha Portugal de fio a pavio; Fernanda, arquiteta, do ateliê da Praça da Figueira saem projetos de muitas ourivesarias, gosta de comer e já ilustrou uma ementa; Maria Celeste, engenheira química reformada, faz "sete sete" anos em outubro, voltou à escola mas também dá aulas, aprendeu a desenhar com um pauzinho de madeira e gosta de sair da "zona de conforto".
Esta mão-cheia de gente junta-se hoje nestas páginas porque é Dia do Desenhador (faz 564 anos que nasceu Leonardo da Vinci). Mas eles encontram-se normalmente aos molhinhos no meio da rua, de caderno na mão, sobre os joelhos, fazem das cidades sofá, mesa, tela. São os Urban Sketchers.
Respondem ao repto com entusiasmo. Para acompanhar a torrente com que falam, seria de ler este texto depressa. Ou não. Ou determo-nos em cada história como eles se detêm nos pormenores com que constroem os desenhos que lhes preenchem dezenas de cadernos, de diários gráficos.
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"Comecei com muita fúria a desenhar depois de me reformar. O meu pai pintava muito bem mas eu nunca me tinha virado para isso. Gosto muito de química mas também gosto muito de desenhar." Esta é Maria Celeste Lopes. Vem do mundo das ciências concretas, fez carreira de engenheira química industrial . Começou a desenhar em 2003 e para isso fez um curso na Sociedade Nacional de Belas-Artes (SNBA): "Precisava de um bocado de técnica." E aprendeu, como gosta de fazer com tudo: "Passei a perceber melhor as coisas desde que as olho e desenho."
Os Urban Sketchers trouxeram--lhe o bom do convívio e da partilha de experiências - aliás, a todos eles. Participa nos encontros que se realizam por todo o país, em julho vai ao simpósio a Manchester (a Fernanda, arquiteta, também). Em março aprendeu a desenhar usando pauzinhos de jasmineiro de água - "uma madeira leve e absorvente" - e tinta-da-china com o mestre malaio Kieh Kiean.
"Fizemos um workshop em Alfama e foi fantástico. São pessoas que nos trazem novas experiências. É bom sair da zona de conforto e não fazer bonitinho. O que interessa no desenho não é o resultado final. Não é para mostrar, é para a pessoa dizer o que sente."

Um dos desenhos de Celeste
© Paulo Spranger/Global Imagens
"A minha meditação"
Fernanda Lamelas, já se sabe, também vai a Manchester - "este ano vou estar toda contente em Manchester a desenhar" é a frase precisa. E foi a Barcelona (2013) e a Singapura (2015). Começou a desenhar com os Urban Sketchers no Simpósio Internacional de Lisboa em 2011. Desta mão-cheia de gente, ela (e João Catarino) é das que teria "vantagem". Afinal, a profissão dela é desenhar. Cidades. Casas. Espaços (especializou-se em decoração de interiores de ourivesarias). "Sou arquiteta de formação e ainda sou do tempo de desenhar. Sempre desenhei. Sempre fiz fases do projeto à mão", começa por dizer. Há 15 anos frequentou um "daqueles cursos pós-laborais" da SNBA, onde fez uma aprendizagem clássica do desenho. Há quatro, também na SNBA, fez um workshop de diário gráfico com a Mónica Cid. "E de repente descubro uma forma muito mais livre de desenhar..."
Livre, munida de caneta e aguarelas e caderninhos. "Comecei a aprender vendo como é que as outras pessoas fazem, como resolvem." Nos encontros, em Portugal e no estrangeiro, onde (re)encontra tanta gente, e que descreve como "uma histeria coletiva". Três dias a desenhar de manhã à noite, muitos desafios diferentes. Mas não é uma barafunda, como pode parecer. "Tem de estar cada um no seu mundo. É bom termos aquele momento. Eu digo que aquela é a minha meditação", diz. Um processo que é uma procura constante, um conflito, uma luta - "conhece algum artista satisfeito?" é a pergunta que percorre estas conversas.

Fernada gosta de desenhar comida
© Orlando Almeida/Global Imagens
Andam todos numa busca, sem pressa de chegar. "Nem sempre desenhar é uma coisa que dá prazer. Queremos que fique alguma coisa que satisfaça, há uma luta contra uma insatisfação", diz a arquiteta, com ateliê na Praça da Figueira, em Lisboa. Dali saem os projetos. E entram os desafios, a reboque do diário gráfico que faz e mostra no seu blogue. "É um hobby, mas já fui contactada para fazer várias coisas. Fiz uma carta para aquele restaurante da escola [de Hotelaria e Turismo] de Campo de Ourique. O Miguel Júdice convidou-me e disse que me mandava as fotografias. E eu disse não, eu tenho de ver e comer." Fernanda ri-se. Comeu e desenhou o que viu, cheirou, saboreou e sentiu. "O desenho gráfico é muito mais do que linhas e cores e formas. São momentos de vida."
E conta como o desenho a ajudou num muito particular: "Perdi o meu pai há um ano e o meu pai passou por meses de doença, mais de seis meses, e eu fiz um caderno. Desenhava as nossas conversas, os sítios, o que ele me contava. É algo completamente pessoal, nunca publiquei nenhum desses desenhos, mas foi uma forma de me estruturar num momento muito complicado e foi uma coisa que me ajudou imenso. E a minha mãe também está muito naquele caderno. Tenho momentos em que consigo que eles cá estejam, não consigo explicar."
Escultora de sorrisos
Ana Cristina Jácome, 52 anos. "Sou médica dentista, professora na Faculdade de Medicina Dentária da Universidade de Lisboa, estou há quatro anos a fazer doutoramento e tenho quatro filhos", anuncia. E, descobrimos depois, trabalha em três consultórios. E não falha os encontros dos Urban Sketchers. "Sempre gostei de desenhar, adorava tintas e cores e os meus desenhos sempre foram arco-íris. Se calhar os meus pais sempre pensaram "lá vai esta para artes e depois vai pedir para a porta do metro"." Mas Ana Jácome também sonhava ser escultora. "Tornei-me escultora de sorrisos." É com esta boa disposição que conta como o desenho se tornou uma presença diária na sua vida. "Já não consigo ir a lado nenhum sem levar material, pelo menos um caderno e uma caneta."

O métier de Ana Jácome também é desenhado
© Gustavo Bom/global Imagens
Fez um curso na Nextart de pintura a óleo. Quando começou o doutoramento, há quatro anos, descobriu os diários gráficos. Já fez vários workshops e regista nos cadernos o seu mundo. Por exemplo, as férias. Prefere desenhá-las em vez de fotografar. "Faz com que me lembre como estava naquele momento, naquela cidade, naquele país." Já tentou desenhar os filhos, que são os seus "maiores críticos". Não desiste. E retoma a ideia de paz, que Fernanda já esboçara nesta conversa: "Cada desenho é um desafio que me faz evadir de tudo... como se fosse uma meditação orientada para um propósito. O traço e a mancha são um prolongamento do que vejo e sinto, dando cor à vida seja qual for a situação ou o local, mesmo que cinzento como uma sala de espera num hospital."
Faz de conta que João Catarino a ouviu. "Mesmo tendo uma vida de rotina, há sempre um período qualquer de espera, numa viagem de comboio, num prato que demora a chegar num restaurante", diz o ilustrador e professor que transforma as esperas em viagens, pelo desenho, sem precisar de ir a "territórios longínquos ou exóticos. "Levamos o conceito de viagem para trajetos muito curtos, e isso é giro."
Aprender a olhar

As esperas são desenhadas. Uma viagem, uma pausa
© Paulo Spranger/Global Imagens
Tem 51 anos e é professor na Faculdade de Belas-Artes, no Ar.co e ilustrador. E é um romântico que há 25 anos começou a desenhar ainda estudante . "Com o professor Lagoa Henriques, que batizou em português o sketckbook, que é o diário gráfico." Integrou o primeiro grupo de Urban Sketchers portugueses. Para João Catarino, que já ilustrou Portugal em vários desafios distintos - por exemplo, com Pedro Adão e Silva, de praia em praia (Tanto Mar) - e dá aulas há 20 anos, não há quem não consiga desenhar. "O segredo é praticar. Tem que ver com a ideia motora do jeito. Antes de se ter esse tal jeito, acredito que se pode educar a maneira de ver, a maneira de olhar e desconstruir aquele processo convencional do desenho de representação imediata."
E é no olhar que está a chave. No aprender a olhar. "Desenho é treino de observação. Todos achamos que vemos lindamente com mais dioptrias ou menos. Não é nada disso. Há coisas que são fascinantes, que não se decifram num primeiro olhar. É preciso tempo, aquela coisa que os antigos tinham..."
Acredita que as profissões podem ter reflexo na forma como se desenha. Os arquitetos ("nos desenhos de abordagem mais sumária, são desenhos muito viciados), nos que fazem banda desenhada, cartoon ou ilustração ("há pequenos tiques que se exportam"). "Uma pessoa que tem um temperamento de letras será diferente de uma que vai para as matemáticas (...) as pessoas que têm uma profissão que obriga a mais rigor estão preocupadas com o rigor, em vez de se soltarem e fazer uma coisa mais orgânica, mais plástica", resume.
O ilustrador sabe que não é fácil, o desenho. "Levanta imensos fantasmas. As pessoas não querem expor-se a maus resultados, a primeira ideia é desconstruir esse conceito". Teresa Ruivo não tem esse problema. Tem a casa de pantanas e um senhor não muito novo, gordinho e de óculos, pinta-lhe as paredes. Sabe quem a segue no blogue teresaruivo.blogspot.pt.

Teresa Ruivo gosta de desenhar pessoas
© Orlando Almeida/Global Imagens
"É uma angústia horrível. Nunca mais acaba." As pinturas de casa, entenda-se. Porque as outras, alimenta com gosto em suaves doses diárias. O caderno, a caneta de água [com que se preparam as aguarelas], a de tinta-da-china e as aguarelas andam sempre consigo. "Desenho sempre que posso e me apetece. Às vezes estou a caminho do consultório e há alguma coisa que me chama atenção. Se tenho tempo, estaciono, saio do carro e desenho. Meia hora, venho-me embora, vou trabalhar. E depois à noite, se aquilo ficou minimamente engraçado, digitalizo, ponho no meu blogue e no blogue dos Urban Sketchers.".
Apesar deste treino intensivo repete "eu não sei desenhar". Psicóloga infantil, tem 52 anos e apeteceu--lhe desenhar um dia ao olhar as fotografias de Eduardo Gageiro. "Comecei a achar piada ao desenho ligado a qualquer coisa de concreto. Depois descobri o urban sketching. Não tenho formação nenhuma em desenho." Tem os cadernos pejados de gente, adora desenhar "velhotes": "Gosto especialmente de desenhar pessoas. É o que mais me toca, a diversidade das pessoas é uma coisa maravilhosa. Gosto de tentar apanhar as pessoas no seu quotidiano, essa rotina é uma coisa que acho um bocadinho comovente. Mas gosto de registar o momento sem me preocupar se estou a desenhar bem ou mal porque... eu não sei desenhar."
O site dos Urban Sketchers Portugal tem uma frase no cabeçalho (atribuída a John Ruskin, intelectual inglês do século XIX ): "Nunca encontrei ninguém completamente incapaz de aprender a desenhar."

Teresa Ruivo desenhou a sessão fotográfica no DN
© Teresa Ruivo
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