A cortina de luz que vai guardar todos os livros de Angra do Heroísmo

Nova biblioteca tem a assinatura de Inês Lobo e chega após anos de polémica e atrasos. Falta agora transferir o acervo que estava disperso por cinco espaços da cidade

Há um novo edifício camuflado na malha urbana de Angra do Heroísmo, na ilha Terceira, Açores. E não é coisa pequena, são 9600 metros quadrados de área bruta de construção que dão forma à Biblioteca Pública e Arquivo Regional Luís da Silva Ribeiro, em Angra do Heroísmo. Um projeto do ateliê da arquiteta Inês Lobo que demorou sete anos a ser finalizado. Mas agora lá está ele, com porta aberta na Rua do Morrão, n.º 42, a definir todo um quarteirão central da cidade, ao lado do carismático Palacete Silveira e Paulo, do século XIX (onde funciona atualmente a Direção Regional da Cultura dos Açores).

Este portento da arquitetura contemporânea acabado de inaugurar (a 16 de setembro) mostra-se em imaculadas paredes, brancas ou de vidro, como se fossem enormes cortinas. O vidro translúcido, o chamado U Glass, é por isso um dos materiais que marca esta arquitetura. Mas não só, também o betão e a madeira. E o basalto. O melhor é entrar.

Vista do interior, a biblioteca parece absorver a cidade - ou vice-versa - num jogo de vidro e luz. Só lá dentro se percebe a dimensão do edifício de três andares. Que o diga Cláudia Cardoso, a diretora do equipamento que anda há dois meses num virote (desde que foi selecionada no concurso público e deixou a cadeira de deputada socialista da Assembleia legislativa regional). "Não preciso de ir ao ginásio", diz fazendo voz dos funcionários da casa - habituados ao Palácio Bettencourt, na Rua da Rosa, lá mais abaixo na planta, onde até setembro funcionou a biblioteca da cidade. Agora a casa solarenga barroca ficou para trás e a nova rotina no edifício projetado por Inês Lobo é bem diferente. Cláudia Cardoso espera cumprir os 12 meses estipulados para a mudança de casa estar concluída.

Está em curso uma tarefa que parece, ainda, hercúlea: transferir a totalidade do acervo disperso por cinco edifícios diferentes da cidade. Dois já lá vão, faltam três. Dito desta forma até parece ligeiro, mas não é. Todo o material que entra no novo edifício é antes sujeito a desinfestação: 21 dias em enormes bolhas de anoxia, seguido de limpeza e aspiração. Só depois ganha lugar nas enormes prateleiras (ou nas reservas, no piso invisível do subsolo). Enquanto decorre este processo, há restrições à consulta. Se a documentação já entrou na bolha, há cerca de um mês de espera. Se não, os serviços têm permitido a consulta do material que ainda está no Palácio Bettencourt, assegura a diretora.

Tínhamos em nossa posse todos os livros de depósito legal e não eram consultados. A biblioteca estava incapaz de cumprir integralmente a sua missão. E agora não

A biblioteca de Angra do Heroísmo tem três valências: biblioteca com secção infantil (há um espaço bebé), juvenil e de adultos, arquivo regional e depósito legal. "Somos nos Açores a única biblioteca que tem o estatuto de depósito legal. E isso implica que temos uma responsabilidade de conservação da memória futura e também uma responsabilidade de tornar acessível a todas as pessoas independentemente da sua localização tudo o que é publicado em Portugal", explica a diretora. Entre os tesouros da casa dos livros desta cidade que respira história, destaque para fundos como o do Conde da Praia e o da Capitania Geral dos Açores. "São fundos muito grandes e muito importantes do ponto de vista do que é a história e a construção da história da ilha e da cidade e dos Açores. E do país", salienta Cláudia Cardoso, aludindo aos períodos da história em que Angra do Heroísmo foi capital do reino.

A responsável tem neste momento uma centena de currículos para avaliar, fruto dos concursos que abriram e que deverão levar sangue novo à equipa. Serão mais 20 funcionários (seis técnicos superiores, dez assistentes técnicos e quatro assistentes operacionais) que permitirão garantir o funcionamento dos sete balcões ao dispor dos leitores (no anterior edifício eram três).

"Este edifício exige dos funcionários uma adaptação grande", admite. "Mas tem características que vão permitir que a biblioteca funcione no curto/médio prazo em condições de excelência e também permite acautelar toda a documentação por um período estimado de 30 anos, tem armazenamento e tratamento adequado que era algo que estava comprometido no anterior edifício. Tínhamos em nossa posse todos os livros de depósito legal e não eram consultados. A biblioteca estava incapaz de cumprir integralmente a sua missão. E agora não", sublinha.

Uma arquiteta otimista

Inês Lobo está esta semana na cidade. Vai, entre outras coisas, fotografar o edifício silencioso. Começam a surgir no ateliê pedidos de informação, agora que a obra está finalmente concluída. A arquiteta lisboeta nunca deixou de acreditar que um dia entraria na biblioteca que idealizou porque, assume, é "otimista por feitio". Foi um processo duro mas agora parece ser tempo de respirar fundo e de falar do edifício e da sua história.

"Esta obra foi muito difícil, demorou muito tempo. Estas coisas são difíceis não só para as pessoas envolvidas na obra mas também para as pessoas que habitam a cidade. É muito chato ter uma obra parada no meio de uma cidade. A primeira relação que as pessoas tiveram com o edifício não foi muito positiva. Mas depois, com o andar do tempo, e agora que puderam entrar, penso que essa opinião mudou radicalmente", diz.

A obra da biblioteca foi adjudicada por 13 milhões de euros em 2009 e parou em fevereiro de 2012 na sequência da falência do empreiteiro. Em julho do mesmo ano o governo regional tomou posse administrativa da obra mas só em abril de 2015 e após três concursos públicos e uma auditoria do Tribunal de Contas os trabalhos avançaram. O orçamento acabou por se fixar nos 18 milhões de euros. Já antes o projeto tinha sido contestado, pela localização nos terrenos anexos ao palacete do século XIX - a arquitetura contemporânea no coração da cidade Património Mundial da UNESCO.

A equipa de Inês Lobo avançou para a proposta final com pinças, respondendo ao desafio de um concurso público. Os arquitetos passaram muito tempo na cidade. O centro histórico de Angra tem o peso de ser Património Mundial pela UNESCO, após a bem-sucedida reconstrução pós-terramoto de 1980. "Demos voltas e voltas à cidade para tentarmos perceber aquele local de todos os pontos de vista. Depois passámos o resto do tempo, que não era muito, a tentar encontrar esta solução. É evidente que esta solução só se encontra com uma leitura muito aprofundada do que é aquele lugar, das possibilidades que ele revelou", diz.

Um edifício público é espaço público. Uma coisa que a mim me interessa imenso na arquitetura é desenhar os edifícios públicos como extensão do espaço público

Está contente por a obra ter chegado ao fim. E há pormenores que lhe agradam especialmente. Como o facto de o edifício não se impor na cidade - "é uma coisa que se descobre por acaso, atrás de um pequeno palacete". Ou a clareza e a tranquilidade dos espaços que se percorrem, apesar de a volumetria do edifício ser bastante complexa - "porque ele aceita os limites do lote e os limites do lote tinham essa complexidade".

Neste resultado, a relação com o vizinho Palacete Silveira e Paulo, exemplar de relevo da arquitetura açoriana do século XIX, é essencial. "Queríamos que o palacete continuasse a ser acima de tudo o protagonista quando percorremos a cidade e eu penso que isso acontece", diz Inês Lobo. "À primeira vista [a biblioteca] parece um pavilhão de jardim do palacete."

A transparência que o vidro e o desenho do edifício da biblioteca oferecem são uma forma de relacionamento com a cidade. "Um edifício público é espaço público. Uma coisa que a mim me interessa imenso na arquitetura é desenhar os edifícios públicos como extensão do espaço público. Nós devemos poder reconhecer aquilo que a cidade tem para nos dar e isso não é apenas aquele espaço vazio entre os edifícios mas são também os edifícios de livre acesso. Numa biblioteca essa ideia é ainda mais importante", acentua.

Na sala de leitura, a "caixa de aço e vidro", há muitas prateleiras vazias. Os milhares de livros ainda têm um caminho a fazer antes de se instalarem na madeira resistente que Inês Lobo escolheu para transmitir conforto a quem ali permanece ("um aglomerado de três madeiras usado em painéis de cofragem, muito resistente à flexão e às humidades").Entra uma turma da escola, numa das atividades que a biblioteca está a dinamizar, para chamar a si os terceirenses. "Na secção de adultos [os alunos] fazem uma simulação do que é fazer uma requisição na sala de leitura e de empréstimo. Isto tem permitido dar vida ao edifício, a que ele esteja povoado. Uma instalação deste tipo, com a riqueza que nós aqui temos, tem de se encher de vida", espera a diretora.

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