ZIDANE E SCOLARI PARTE 2

Publicado a
Atualizado a

Um golpe de sol pode ser o motivo absurdo para um assassinato gratuito, como acontece em O Estrangeiro de Albert Camus. Um drama semelhante parece estar na origem da cabeçada de Zidane a Materazzi no Mundial de futebol . No romance de Camus, o gesto do protagonista determina a sua condenação à morte. O gesto de Zidane não só provocou a expulsão humilhante do capitão francês na cena derradeira de uma carreira mítica como terá condenado à morte por penalties a sua selecção. A perturbante coincidência de Camus e Zidane serem ambos argelinos e pied-noirs franceses explicará, porventura, o mesmo fascínio pelo absurdo, pelo sol negro que interfere, como na tragédia grega, no desenlace dos destinos?

Camus não explica o gesto do seu "estrangeiro", tal como não é explicável o gesto de Zidane. O capitão francês era conhecido por ser temperamental, emocional, taciturno, secreto, como uma personagem de film noir. Mas nada disso torna compreensível que, no momento da saída teatral de cena, um actor tão experiente e genial - e que apostara tão decididamente em deixar uma marca de esplendor nesse adeus - se mostrasse tão vulnerável a tentações ou provocações vulgares. O certo, porém, é que Zidane não resistiu a essa pulsão suicidária, à cabeçada selvagem com que assinou a certidão de óbito de um mito.

Foi assim que Zidane morreu como futebolista e que a selecção francesa - que com Zidane dera a volta à imagem de declínio do país que representava - acabou por regressar a um triste ponto de partida. Quando tudo parecia propício a um momento épico de retorno às velhas glórias (de Zidane e da França), uma cabeçada liquidou as ilusões. O "estrangeiro" Zidane acabou por confortar Jean-Marie Le Pen, para quem a selecção da França era uma criação artificial, construída a partir de elementos rácicos estranhos à alma gaulesa.

Portugal não conseguiu ultrapassar o que, em crónica anterior, chamei o "factor Zidane". Reeditando uma cena do penúltimo Europeu, foi um penalty de Zidane que nos afastou da final do campeonato que tinha surgido ao nosso alcance. Simbolicamente, Zidane derrotou Scolari nesse duelo indirecto entre dois "estrangeiros": o argelino e o bra - sileiro. E essa derrota deixou Portugal já sem ânimo suplementar para repetir o terceiro lugar dos Magriços em Inglaterra, há quarenta anos atrás.

Não por acaso, os críticos de Scolari regressaram em força, apontando os seus erros tácticos na chamada "pequena final" com a Alemanha. A verdade, porém, é que ele não tinha, se quisermos ser justos, quase nenhuma margem de escolha fora do seu quadrado predilecto. Além disso, Scolari formou uma equipa que, em termos de talento exibido nos estádios, foi capaz de merecer o título de selecção mais "empolgante" na Alemanha 2006 .

Comprovou-se, evidentemente, que faltam a Portugal pontas-de-lança de raiz, que o talento de simulação, dissimulação (as famosas "quedas" dos jogadores) ou artifício não chega para colmatar o défice de agressividade e eficácia concretizadora. Alguns já viram nisto, aliás, uma metáfora do país que somos: somos muito mais simuladores, dissimuladores, artistas, românticos, do que pragmáticos da concretização.

Mas, já agora, talvez fosse possível dar uma volta às tentações metafóricas e ver nesta selecção (quase a melhor possível em termos reais e porventura irrepetível nos tempos que se seguem) um concentrado das aptidões nacionais que não temos conseguido explorar nos domínios da política, da economia e da administração do Estado, por exemplo. Imaginemos apenas que tínhamos, nesses domínios, apenas um pouco da arte e criatividade da quarta melhor selecção de futebol do mundo - e que éramos capazes de emprestar um pouco mais de convicção às nossas diferenças e especificidades nacionais, em vez de as desbaratarmos no derrotismo psicótico do fado lusitano.

Tudo no Mundial acabou por ser infinitamente relativo. A Itália foi campeã, sem méritos especiais e apesar de alguns dos seus maiores clubes estarem envolvidos em escândalos mafiosos. Se Zidane não tivesse dado uma absurda cabeçada a Materazzi, o título teria sido provavelmente francês. E se Scolari tivesse conseguido levar a nossa selecção até à final, talvez não fosse inverosímil estarmos hoje a comemorar o título de campeões do mundo de futebol . Mas sermos campeões do mundo não nos deixaria estrangeiros no nosso próprio país e deslocados - alienados - da nossa realidade? Assim regressamos a Camus.

Artigos Relacionados

No stories found.
Diário de Notícias
www.dn.pt