Zero viagens e duas camisolas: o saldo das novas leis sobre ofertas aos deputados
As novas regras sobre as prendas oferecidas aos deputados, que entraram em vigor no início desta legislatura, saldaram-se pela entrega de... duas camisolas. Foram os únicos itens apresentados pela totalidade dos deputados à secretaria-geral da Assembleia da República, que, concluindo que as camisolas valem menos do que 150 euros (o valor a partir do qual é obrigatório declarar as ofertas), as devolveram aos dois deputados que as receberam.
As novas regras em relação às prendas que são oferecidas a titulares de cargos públicos estão definidas no Regime do Exercício de Funções por Titulares de Cargos Políticos e Altos Cargos Públicos, que entrou em vigor no primeiro dia da presente legislatura, e que estabelece que "as ofertas de bens materiais ou de serviços de valor estimado superior a 150 euros, recebidas no âmbito do exercício de cargo ou função, são obrigatoriamente apresentadas ao organismo definido no respetivo código de conduta". Por seu lado, o código de conduta dos deputados determina que "as ofertas de valor estimado superior a 150 euros recebidas no âmbito do cargo ou função são apresentadas junto da secretaria-geral da Assembleia da República, para efeitos do seu registo e definição do seu destino, tendo em conta a sua natureza e relevância".
Questionada pelo DN, a secretaria-geral da AR avançou que "foram declaradas duas ofertas. Trata-se de camisolas, cujo valor comercial era inferior a 150 euros. Assim, nos termos do código de conduta, as mesmas foram aceites e ficaram na posse dos deputados em questão".
A lei prevê a publicitação das ofertas, mas os registos dos parlamentares disponíveis no site da Assembleia da República não fazem ainda menção a este aspeto. "O código de conduta dos deputados à Assembleia da República entrou em vigor no primeiro dia da XIV Legislatura, concretamente a 25 de outubro de 2019. No entanto, ficou salvaguardado que a implementação de alguns aspetos dependeria das medidas que os serviços tivessem de realizar. Assim, embora a norma esteja já a ser aplicada, o desenvolvimento da aplicação, que lhe dará publicidade, apenas será disponibilizada em setembro de 2020", acrescentou a mesma entidade.
O código de conduta dos deputados estabelece que os parlamentares "se abstêm de aceitar ofertas de pessoas singulares ou coletivas, públicas e privadas, nacionais ou estrangeiras, de quaisquer tipos de bens ou serviços que possam condicionar a independência no exercício do seu mandato". "Entende-se que pode existir um condicionamento da independência do exercício do mandato quando haja aceitação de bens ou serviços de valor estimado igual ou superior a 150 euros", explicita o mesmo documento, que prevê duas situações em que estas ofertas podem ser aceites: quando haja "dúvidas razoáveis sobre o seu valor estimado" ou quando a recusa possa ser entendida como uma falta de consideração por quem oferece, nomeadamente no quadro das relações entre órgãos de Estado. Em janeiro deste ano, a Comissão de Transparência e Estatuto dos Deputados aprovou um documento com os "critérios orientadores em matéria de ofertas e hospitalidade recebidas pelos deputados".
Caso aceitem prendas de valor estimado superior àquele montante, os deputados ficam obrigados a apresentá-las à secretaria-geral da AR, entidade à qual cabe decidir o destino das "prendas" - que podem, por exemplo, ser destinadas à biblioteca ou ao museu do Parlamento. Ou podem ser entregues a "outra entidade pública ou a instituições que prossigam fins não lucrativos de carácter social, educativo e cultural".
Face à pequeníssima lista de ofertas declaradas, que nem sequer perfaziam o valor referenciado na lei, a questão não se levantou ao longo da presente sessão legislativa. A atipicidade do último ano terá contribuído para isso, dado que a atividade do Parlamento - como, de resto, toda a atividade no país - ficou reduzida a mínimos durante largos meses.
Também as ofertas de viagens - uma questão que já motivou a demissão de membros do executivo - estão sujeitas a um novo quadro legal, com o mesmo teto de aceitação de 150 euros. Neste caso, a aplicação para registo de hospitalidades já está disponível, mas o DN consultou o registo dos 230 deputados e não encontrou qualquer menção a viagens. A secretaria-geral da AR explicitou, posteriormente, que a "introdução da informação relativa a deslocações e hospitalidades é efetuada diretamente através de preenchimento de formulário, o qual ficou disponível no Portal do Deputado a 13 de julho de 2020" - ou seja, há cerca de um mês. A mesma entidade não esclarece se há prazos para a declaração, que a lei também não estipula. Certo é que, até agora, nenhuma viagem foi declarada.
No caso das viagens, a lei dispõe que os titulares de cargos políticos e altos cargos públicos, convidados nessa qualidade, "podem aceitar convites que lhes forem dirigidos para eventos oficiais ou de entidades públicas nacionais ou estrangeiras". Se a entidade que convida for privada, as regras são substancialmente diferentes - podem ser aceites os convites para viagens "até ao valor máximo, estimado, de 150 euros", que sejam "compatíveis com a natureza institucional ou com a relevância de representação própria do cargo" ou que "configurem uma conduta socialmente adequada e conforme aos usos e costumes".
Fora do dever de registo fica a aceitação de ofertas, transporte ou alojamento que "ocorra no contexto das relações pessoais ou familiares". A obrigação de declarar as ofertas também não se aplica quando estas tenham como "destinatários os partidos políticos, incluindo os respetivos grupos parlamentares".