Zelensky fala no Parlamento. Como se constrói o discurso?
Depois de já ter discursado em mais de duas dezenas de parlamentos por todo o mundo, Volodymyr Zelensky discursa esta quinta-feira por videoconferência na Assembleia da República. Com início marcado para as 17h00, é esperado que a intervenção do presidente ucraniano siga, em traços gerais, o conteúdo dos discursos que já fez noutros países.
Ao DN, Fernando Lima, ex-assessor de Cavaco Silva durante dez anos, explica que, nestas ocasiões, "há todo um trabalho feito pelos canais diplomáticos" para acertar todos os detalhes. Depois, na construção do discurso propriamente dito, há pormenores que devem ser tidos em conta. "Penso que o presidente ucraniano se vá dirigir a Portugal com alguns traços identificativos do país", à semelhança do que aconteceu noutros países. Quando discursou no Bundestag - o parlamento alemão -, a 17 de março, Zelensky recuou até à época da Cortina de Ferro para explicar o que, para si, estava em causa. "Não é um Muro de Berlim, é um muro na Europa Central entre a liberdade e a escravidão e este muro fica maior a cada bomba lançada sobre a Ucrânia. Caro senhor chanceler Olaf Scholz, derrube este muro", disse então.
Na opinião do historiador António José Telo, o discurso de Zelensky no Parlamento poderá focar-se em dois episódios concretos: as guerras das invasões francesas e o 25 de Abril. Para o historiador, a primeira hipótese "é a situação mais semelhante. Aquando das invasões, praticamente todos os portugueses combateram contra o invasor". Apesar das semelhanças, diz António José Telo, "este episódio é antigo, são mais de 200 anos e isso pode fazer com que seja descartado por Zelensky". Por outro lado, "o 25 de Abril representa a liberdade e o presidente ucraniano pode fazer essa analogia. De que a Ucrânia lida e luta pela sua liberdade contra a opressão do sistema russo", considera o historiador.
Apesar das referências a traços históricos de cada país, os discursos de Zelensky não têm sido consensuais. Na Grécia, por exemplo, a intervenção do presidente ucraniano causou polémica. Tudo porque, durante a intervenção, Zelensky cedeu a palavra a uma mensagem pré-gravada de um membro do Batalhão Azov (uma milícia neonazi) por, alegadamente, ter raízes gregas. Perante isto, vários responsáveis políticos do país criticaram a decisão de passar a mensagem, tendo mesmo havido deputados a abandonar a sala.
Além das referências históricas, também os pedidos de ajuda internacional têm estado presentes nos discursos de Zelensky, seja para pedir mais apoio militar ou ajuda humanitária. O mesmo pode acontecer na Assembleia da República, considera Fernando Lima. "O presidente ucraniano pode vir a ter em consideração a relação entre os dois países, tanto no contexto de apoio e acolhimento de refugiados como noutras áreas".
Com um passado ligado à televisão e ao entretenimento, a postura de Zelensky nestes discursos não é, de todo, surpreendente. Para isso, conta com a ajuda de membros da equipa de guionistas da série televisiva em que era o ator principal. Segundo um trabalho do jornal inglês The Guardian, uma dessas pessoas é Dmytro Lytvyn, um ex-jornalista de 38 anos que, citado pelo jornal, explicou que "o presidente sabe sempre o que dizer e como dizer. As emoções são naturais". Segundo o jornal inglês, aquilo que Lytvyn faz é, no fundo, construir os discursos em parceria com Zelensky, depois de passar alguns dias a apontar as ideias do presidente. "O facto de Zelensky ter um media training ajudou e muito a que se tenha tornado quase um herói dos nossos tempos", constata ao DN Carlos Coelho, publicitário. "Aquilo que o presidente ucraniano tem de diferente em relação à maioria dos políticos é a comunicação. Zelensky tem uma grande capacidade comunicacional", explica. E, constata Carlos Coelho, "o presidente ucraniano despiu o fato de presidente e vestiu o fato de soldado. Isso faz com que as pessoas se sintam mais próximas e identificadas com Zelensky, com a mensagem a passar de forma mais eficaz".
Além disso, as intervenções de Zelensky pelo mundo podem também ser analisadas do ponto de vista diplomático. Segundo o embaixador António Monteiro, "é evidente que os discursos são exercícios de comunicação internos e externos. Ao mesmo tempo que fala para o seu povo, Zelensky fala também para fora e apela à solidariedade entre povos". De acordo com o diplomata, "é também interessante que o presidente ucraniano vá falando aos parlamentos mais do que a qualquer governo", isso serve, segundo António Monteiro, "para que os representantes não deixem o assunto cair no esquecimento".
Também Fernando Lima considera esta postura relevante. "Os discursos nos diferentes parlamentos mundiais têm servido também para apelar à solidariedade dos povos".
Ao mesmo tempo que tem apelado à comunidade internacional para que ajudem a Ucrânia, Zelensky tem lutado, também, para manter a unidade do povo ucraniano perante o cenário de conflito que apareceu no fim de fevereiro. Algo que, para António Monteiro, "requer uma certa lucidez. Não é fácil manter uma unidade interna, solicitar a luta do povo, ao mesmo tempo que mantém os pedidos de apoio internacionais".
Perante este cenário, é natural que, no panorama internacional, tenham surgido mudanças. De acordo com António José Telo, "temos assistido aos discursos como sendo pedidos de ajuda, mas mais do que isso: estamos a assistir a mudanças". Na ótica do historiador, "a União Europeia não é a mesma de há dois meses", isto porque, com os discursos que tem feito, Zelensky e a Ucrânia "têm dado uma lição aos outros países, nomeadamente ao nível da união em relação à Rússia, que é criticada praticamente por todos os Estados-membros".
Estas mudanças são também fruto do aumento da notoriedade de Zelensky. De acordo com Carlos Coelho, "é quase distópico, parece tirado de um filme, termos um político a falar num pedestal - ainda que virtual - perante os representantes de outros países. Nunca antes na história isso aconteceu e pode ter sido aberta uma nova porta em termos comunicacionais", assegura o publicitário.
rui.godinho@dn.pt