Yuri, o médico que virou guia para os horrores da guerra

O clínico ucraniano consegue descrever com precisão cirúrgica os bombardeamentos russos à sua aldeia. "Foi como no cinema", recorda.
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"Foi disparado da Crimeia", assegura o médico Yuri Vikrorovich Schevencko, enquanto mostra o que resta de um míssil. O foguete foi abatido pelas defesas ucranianas a 20 de março. Três peças de aço esperam agora ser removidas de um campo agrícola junto à aldeia de Kashpero-Mikolaivka. "Aqui está o motor, veem os propulsores?", pergunta, de forma quase retórica. O homem dá mais uns passos. "Este era o depósito, ainda tem combustível." O médico tornado guia aponta depois para a peça maior com quase dois metros de comprimento: "Aquele é o corpo do míssil", explica, numa espécie de aula de anatomia balística.

A ogiva não está junto do resto dos destroços, vamos encontrá-la a menos de um metro da parede da única casa que há nas redondezas. Um farrapo vermelho atado a um pequeno pau assinala o perigo que Yuri garante não existir. Um quilómetro mais à frente está caído outro míssil russo: "Esse ainda está armado, não nos podemos aproximar", especifica o homem, que já o viu de perto. "Foi uma imprudência, não sabia como estava", confessou mais tarde. Os mísseis que caíram nos campos de Kashpero-Mikolaivka são marcas da era soviética. É o modelo OTR21 Tochka, igual ao encontrado na estação de Kromatorsk, há uma semana. São munições de fragmentação que o Kremlin insiste já não utilizar.

Os mísseis foram intercetados já depois das forças russas terem abandonado Kashpero-Mikolaivka. "Foi no dia 20 de março. Voavam muito baixinho para evitar os radares." O destino dos projéteis era Kirovorad, mas despenharam-se 140 quilómetros - ou seja 77 segundos - antes de atingir o alvo. "Foi isso que nos disseram os militares", revela o clínico que em tempo de guerra se transformou em guia de jornalistas.

Já em casa, enquanto bebe chá e come bolachas, o homem conta que, ao contrário de outras histórias que ouvimos pela aldeia, a sua habitação não foi ocupada: "Salvou-nos o facto de eu sair várias vezes ao encontro deles e de ter dito que tínhamos o meu neto de quatro meses connosco. O bebé nunca saiu da cave enquanto eles ocuparam a aldeia".

Os soldados de Putin queriam saber quem era "o apontador". "Revistavam os sótãos, as casas. No meu quintal, por exemplo, eu andava sempre acompanhado por eles". Yuri conta que os "moskalis", (como lhes chama em tom depreciativo), andavam pela aldeia à procura de quem orientava os ataques ucranianos contra as tropas estacionadas em Kashpero-Mikolaivka. "A verdade", reconhece o médico, "é que alguns rapazes da defesa local montavam as autometralhadoras na parte de trás de um jipe e vinham cá dar uns tiros. Não precisavam de orientação. Conheciam bem o terreno, um deles até era o meu sobrinho."

Os russos controlavam tudo. Quando chegavam já sabiam quem era quem e onde morava. "Por exemplo, havia um carro que circulava aqui para ver nem se sabe ao certo o quê. Um dia, a defesa local conseguiu encurralá-lo numa espécie de ilha que há ali em baixo no rio. Na altura não tínhamos equipamento de visão noturna, não era como agora. De manhã, o carro já não estava lá. Saiu por uma parte em que o rio é menos fundo. Isto serve de confirmação de que havia locais a trabalhar com os russos. Parece que havia pessoas que eram pagas, porque ninguém não o fazia de borla."

Durante as visitas que foi fazendo, Yuri ficou a saber o que se passava nas aldeias vizinhas. "A dois km daqui, havia um rapaz das operações especiais que estava em casa quando os russos chegaram. Escondeu-se no meio dos juncos e disparou contra os tanques. Os russos deitaram fogo aos juncos. Ele, entretanto, ficou sem munições e entregou-se. Pelo que me disseram, primeiro cortaram-lhe a orelha e depois deram-lhe um tiro na cabeça."

Mas nem quando as tropas ucranianas atacaram os combates foram intensos. "Penso que aqui não morreu nenhum russo", calcula o médico. Na aldeia mais próxima, a retirada dos "moskalis" foi mais dura. "Houve entre dez a 12 vítimas entre mortos e feridos", relata, acrescentando que os corpos terão sido levados. No entanto, quando as tropas do Kremlin explodiram os equipamentos que deixaram para trás, comentou: "Os corpos levam, a carne picada não".

Durante o tempo da ocupação russa houve três funerais em Kashpero-Mikolaivka. Duas pessoas morreram de causas naturais. O terceiro enterro foi o de Lyudmila Strilez, a única vítima mortal do bombardeamento que precedeu a chegada dos militares da força Z. "Como veem, da casa dela só ficou a cerca", aponta o médico, enquanto nos conduz pelas ruas lamacentas da aldeia ao volante de um velho Lada. "Ficou feita em pedaços, na zona do fígado tinha um buraco do tamanho de uma bola de ténis". O médico sublinha a zona porque a onda de choque desfez o interior do corpo da mulher. "A pele já só estava a fazer de saco para aquele amontoado de carne e sangue."

Yuri assistiu a tudo. Descreve o bombardeamento com precisão cirúrgica: "Primeiro passou um avião, que se inclinou em direção à aldeia. Foi quando vi as bombas a caírem. Quatro. Depois caíram noutra rua. O fumo e o pó taparam tudo. Não se via nada, nem as montanhas. Formou-se uma bola e de repente as portas começaram a abrir-se, os vidros a partir-se, as telhas a voar. Foi como no cinema". E Yuri está praticamente na primeira fila: da sua casa à cratera mais próxima distam menos de cem metros.

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