Xavier Viegas: "Se houvesse outra limpeza, algumas das mortes teriam sido evitadas no fogo de Pedrógão"

O perito em incêndios florestais - que chegou a Pedrógão Grande ainda a tempo de ver retirar os corpos da estrada 236 - não tem dúvidas que a limpeza da mata poderia ter salvo algumas vidas. Em período de seca e novos fogos, por estes dias, adverte para a limpeza (cujo prazo terminou a 15 de março) "ter de ser refeita".
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"A presença daquelas árvores, naquele troço da estrada 236 - uma que caiu impediu a circulação - teria permitido a fuga de algumas pessoas que vieram a perder a vida". Domingos Xavier Viegas, o perito em incêndios florestais que coordena o Centro de Estudos da Universidade de Coimbra reforçou esta manhã no Tribunal de Leiria a tese sustentada no relatório que aquele organismo começou a fazer, logo na manha seguinte ao incêndio de Pedrógão Grande. E que aponta várias falhas, não só na prevenção como nas comunicações e no socorro às vítimas.

O drama é que a mudança das condições climatéricas e a falta de adequação dos meios a este novo tempo podem bem proporcionar a repetição de incêndios similares. No final da sessão, questionado sobre a forma como está a decorrer a limpeza de terrenos no âmbito da prevenção, Xavier Viegas reconheceu que esse trabalho de limpeza "em torno das casas é fundamental, porque se o fogo chegar, as hipóteses de sobrevivência aumentam grandemente. Mas essa limpeza pode ter que vir a ser refeita", adverte o professor.

Na verdade, também Xavier Viegas considera que fixar a data de limpeza para os privados até 15 de março se revela insuficiente. Numa altura em que as temperaturas chegam próximo dos 30 graus, registando-se já diversos incêndios de grandes dimensões, a voz de Xavier Viegas eleva-se também na advertência: "Infelizmente este cenário de seca tem sido normal nos anos mais recentes. As mudanças climáticas apontam nesse sentido. Há um défice de precipitação, proporcionando esta situação de seca, nos últimos anos associada aos piores incêndios". E sendo assim, faz sentido fixar até 15 de março a limpeza dos terrenos? "Não. Porque a natureza e meteorologia não conhece essas datas. Pode chover daqui para a frente, tem que haver outra flexibilidade".

O investigador entende que, de facto, "ainda não adequámos os meios para a preparação do combate". Depois, junta-se um outro problema: "É preciso os nossos quadros de comando tenham formação adequada para estarem à frente do incêndio. Há incêndios com grau de dificuldade e perigosidade tais que exigem recursos que não estão sempre garantidos".

O que a equipa de Xavier Viegas diz no relatório é que "um incêndio destes não se comanda apenas por uma pessoa, mas por todo o sistema que está por trás dessa pessoa. Julgo que isso falhou também, no caso deste fogo de Pedrógão", conclui.

"As pessoas começavam a arder quando saíam dos carros"

Se tivesse havido uma gestão diferente dessa faixa de limpeza, estaríamos perante um incêndio diferente? Xavier Viegas acredita que sim. Se tivesse havido essa gestão, "as consequências e possibilidade de sobrevivência das pessoas teria sido outra". Na verdade, houve uma concentração de calor tão grande nalguns troços, nomeadamente naquele da estrada 236 onde morreram 47 das 66 vítimas, "que as pessoas quando saiam do carro começavam a arder". E foi precisamente esses contornos que explicou em Tribunal. Como "muitas pessoas morreram por falta de socorro", ou como "o corte de estradas dificultou a chegada de alguns meios de socorro", ou ainda como "as comunicações foram cruciais, quando havia pessoas a pedir socorro e ninguém as atendia".

Xavier Viegas foi chamado ao tribunal pelo juiz Gil Vicente, depois de ouvidos os 13 arguidos que integram a acusação do Ministério Público, entre autarcas, técnicos, comandantes de bombeiros e diversos responsáveis de empresas como a EDP e a Ascendi.

A pequena sala de audiências foi mais uma vez pequena demais para acolher advogados, jornalistas e familiares de vítimas. Domingos Xavier Viegas foi interrogado não só pelo juiz como por diversos advogados, mas as respostas do perito convergiram sempre no mesmo sentido: Se houvesse mais meios, naquelas duas ou três primeiras horas, se o fogo tivesse sido controlado, tudo seria diferente.

Gil Vicente chamou-o enquanto "testemunha, dentro do campo da perícia e da perceção". "Li o relatório. Por deficiência técnica vou fazer 3 questões", disse o juiz. A primeira: "quando chegou à estrada nacional 236 assinala a queda de um pinheiro. Encontrava-se a menos de 10 m da tal faixa de contenção? "Sim. Foi identificado por fotos com imagens do google, tiradas antes do incêndio. Estava inclinado para a estrada, seguramente a menos de 10 metros".

O juiz tinha ainda outra dúvida: "Quando pararam os veículos, houve temperaturas de 600 graus. Se acaso estivesse cumprido os 10 m de espaço entre a estrada e a primeira faixa vegetal, e atendendo ao volume de floresta, seria suscetível de reduzir potencialmente o volume do calor? Em que medida baixaria até aos 100 graus, por exemplo?"

Xavier Viegas recordou então esses fluxos de calor. "Houve temperaturas de 1500 graus. Se não existisse essa vegetação, aquele espaço podia ter sido uma zona de segurança para as viaturas que parassem. Algumas das pessoas que faleceram podiam ter saído de lá. Temos registo de pessoas que quando saíram dos carros começavam a arder".

Por último, o juiz pergunta-lhe se confirma que o ouro aguenta até aos 1200 graus. Que sim, diz ele.

Falta de meios, atraso no socorro

Ainda assim, o perito sublinha que, mesmo se fosse cumprida a limpeza dos 10 metros, "as chamas teriam atravessado a estrada". Porque o incêndio em causa - que começa às 14h30, no lugar de Escalos Fundeiros, e mais tarde se junta a outro foco, numa aldeia próxima - teve condições atípicas. Ganhou proporções com uma trovoada e com o fluxo de ventos.

"Houve uma trovoada que afetou claramente os dois focos de incêndio, que se desenvolveram e a certa altura interagiram. Foi isso que causou esta intensidade. Este encontro de frentes vimos a estudar há anos. Na Austrália, por exemplo, já aconteceu várias vezes", afirmou Xavier Viegas.

E nesse cenário, várias aldeias foram cercadas pelo fogo, de forma fatal. "Todas as pessoas que estavam naquelas localidades, para onde quer que quisessem fugir, não podiam".

Muitos dos dados que constam do relatório a equipa do Centro de Estudos sobre Incêndios Florestais só obteve após o incêndio. Saltaram à vista os "poucos recursos humanos e técnicos". Por isso mesmo Xavier Viegas deixou ao Tribunal a ideia de que "temos muitas lições a aprender neste incêndio. Acredito que quem o estivesse a comandar tivesse muita dificuldade", disse.

Ficou ainda patente a disfunção na leitura deste fogo, no que respeita à equipa de Xavier Viegas e à comissão técnica independente. O advogado Magalhães e Silva, que representa Valdemar Alves, presidente da Câmara de Pedrógão Grande, recordou que no relatório da comissão "não existem evidências que relacionem as mortes em espaço aberto com a gestão de combustível", ao contrário da teoria sustentada pela equipa de Coimbra. Foi nessa altura que Xavier Viegas disse desconhecer "a presença dos meus colegas no espaço. Estive lá no dia seguinte de manhã, acompanhei o levantamento dos corpos. Até posso dizer que se tivesse havido melhor gestão da vegetação, as condições seriam diferentes. Na estrada 236 e no IC8".

O período crítico de propagação do fogo aconteceu entre as 19 e as 20 horas do dia 17 de junho de 2017. As mortes ocorreram depois das 20 horas, e até às 21h30. Na sala, a assistir à sessão, estava um dos 250 feridos graves do incêndios, que permaneceu meses internado.

O debate instrutório está marcado para o próximo dia 26 de abril.

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