Wolfwalkers: dos lobos e dos homens

O admirável mundo dos desenhos animados de Tomm Moore está de volta com <em>Wolfwalkers</em>. Mitologia, família e natureza mágica num conto de formas e cores emocionantes.
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Há Pixar, há Ghibli, há Aardman e depois há um pequeno estúdio de animação irlandês chamado Cartoon Saloon, de onde saíram quatro fabulosas longas-metragens, três delas nomeadas para Óscar. A quarta, que muito provavelmente se encaminha para o mesmo posto, é Wolfwalkers, de Tomm Moore (realizador de dois dos títulos do estúdio, The Secret of Kells e A Canção do Mar), novo testemunho da excelente saúde desta linha de animação "artesanal" que nos desperta o fascínio do olhar através da beleza do traço e da génese mais pura dos desenhos. Uma pérola de fim de ano, que não deixa de ser frustrante só estar disponível no serviço de streaming Apple TV+.

Desta vez a partilhar a assinatura com Ross Stewart, Moore regressa àquilo que tem sido apanágio do seu trabalho até aqui. A saber, um gosto específico para tratar o imaginário das lendas locais escocesas e irlandesas. Se o anterior A Canção do Mar centrava a sua história nas Selkies (mulheres-focas), Wolfwalkers parte da crença em seres humanos cujo espírito de lobo se liberta quando adormecem.

O ano é 1650, a cidade Kilkenny (onde está sediado o estúdio Cartoon Saloon), e uma menina inglesa recém-chegada com o pai caçador não se contenta em ficar em casa a limpar e arrumar, enquanto este passa os portões da fortaleza para ir caçar lobos como missão oficial. No ímpeto de aventura, ela segue-lhe o rasto e acaba no interior de um covil onde conhece outra menina de farto cabelo ruivo e poderes curativos, divertidamente selvagem, que lidera uma alcateia: é uma wolfwalker.

A amizade, as relações de poder, os laços entre pais e filhos e, sobretudo, a coexistência da civilização e da natureza mágica das lendas compõem a alma grande desta belíssima animação. Desde logo, ao aplicar linhas retas à cidade sob o comando de um opressivo Lorde Protetor - certamente inspirado na figura de Oliver Cromwell -, por contraste, Moore faz fluir o regime visual na floresta, com as habituais e maravilhosas composições em jeito de tapeçaria ou xilogravura.

O lirismo de um filme como Wolfwalkers reside não só nessa arte das formas, e numa linguagem intensa das cores, mas também na conjugação disso com a narrativa pagã e o elogio do folclore. Neste caso, nos momentos mais dramáticos da história percebe-se mesmo um ambiente social inspirado nos julgamentos das Bruxas de Salém desse século XVII. Porém, tire-se já a teima: não há matéria para pesadelos de qualquer ordem.

Pensamos em prodígios da Ghibli como O Meu Vizinho Totoro, de Miyazaki, ou O Conto da Princesa Kaguya, de Isao Takahata, pelo lado do feitiço que se esconde no bosque, mas há na animação de Moore sabedoria e emoções muito próprias, uma força bravia paredes meias com a serenidade minuciosa do desenho à mão. Ainda é daí que nasce um sem-fim de criatividade, doce e rebelde.

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