Walter Salles: "O bolsonarismo existe como negação do PT"
Entre os convidados do Lisbon & Sintra Film Festival (LEFFEST), a decorrer até dia 25, estão vários convidados especiais. Entre eles, o membro do júri, o cineasta Walter Salles, de quem há para ver títulos que conservam a memória e especificidades do seu país natal (Central do Brasil, Abril Despedaçado, Linha de Passe), como outros que viajam entre a América Latina (Os Diários de Che Guevara), os Estados Unidos (Pela Estrada Fora) e a China (Jia Zhang-ke, Um Homem de Fenyang). Em entrevista ao DN fez questão de dizer que por agora pretende continuar assim, em terras estrangeiras.
Central do Brasil, que assinala 20 anos, é a história de uma criança à procura do pai com a ajuda de uma amiga improvável, mas é também a crónica social de um país que está a expurgar os vestígios da ditadura com um tom de esperança. Ao revisitá-lo agora, qual a leitura que ele nos permite fazer sobre o Brasil deste momento em particular?
Central do Brasil foi pensado em um momento específico da vida brasileira, depois de 30 anos de ditadura militar e dos 3 anos de caos identitário gerado por Collor, antes de seu impeachment. "Central " era um reflexo da orfandade brasileira, mas também a projeção de um desejo: o do reencontro do país consigo mesmo, depois de uma intensa deriva. O menino no coração do filme parte em busca do pai, não o acha, mas reencontra os irmãos que desconhecia. Na ausência de uma pátria, uma fratria. É essa fratria possível que se rompeu na eleição que acabamos de viver.
Como realizador, mas sobretudo como cidadão brasileiro, como olha este novo enquadramento do governo de Bolsonaro?
O bolsonarismo não se constitui como um pensamento articulado, em torno de um partido ou programa de governo. Ele existe como a negação de algo, que é o PT. Nas últimas semanas, avançou e recuou em diversos aspetos. O próprio Bolsonaro votou, quando deputado, contra medidas que seu campo económico projeta. Então, é preciso ver como esses elementos contraditórios irão se configurar no mundo real. Em torno de Bolsonaro, existem alas alinhadas com o Tea Party, outras que fazem prova de um autoritarismo à la Duterte. Para o novo chanceler brasileiro, "o aquecimento global é uma trama marxista para favorecer a China". Declarações como essas parecem sair de um quadro humorístico do Porta Dos Fundos... Até os chineses devem estar dando risadas com tanto despreparo.
Voltando ao Central do Brasil, é um filme com uma narrativa original sua, e que acaba por dar continuidade à ideia da orfandade que já existia em Terra Estrangeira [1995]. O que é que lhe interessa nestas personagens subitamente desamparadas?
O desamparo, e por conseguinte a sensação de falta de pertencimento, não vem de hoje. São centrais em Rio 40 Graus [1955] e Vidas Secas [1963] de Nelson Pereira dos Santos, o mestre fundador do Cinema Novo, ou nos filmes de Glauber Rocha. Como estão presentes em Euclides da Cunha, Graciliano Ramos ou Guimarães Rosa. São problemas estruturais que só serão resolvidos com redistribuição de renda, educação pública, saúde pública, saneamento básico, transportes. Ou seja, repensando radicalmente a sociedade brasileira.
O tema da deriva identitária atravessa praticamente todos os seus filmes e concretiza-se em Abril Despedaçado [2001], naquele momento em que perguntam ao menino como se chama e ele responde só "menino". Em que medida esta questão se impõem nos seus projetos?
Os filmes que me levaram ao cinema são, além dos de Nelson Pereira dos Santos, aqueles de Antonioni e Wim Wenders que tratam da crise identitária no mundo pós-industrial, como Alice nas Cidades [1974] ou Passageiro, Profissão: Repórter [1975]. É uma condição existencial que ainda ecoa fortemente hoje.
A noção de liberdade é também recorrente, e registada de maneira muito simbólica - novamente em Abril Despedaçado, a cena veloz do baloiço, ou o mergulho noturno de Gael García Bernal em Os Diários de Che Guevara [2004]. Como é que a concebe, até politicamente, na hora de fazer um filme?
Gael costuma dizer que para nós, latino-americanos, a escolha da cor da roupa já é uma questão politica. Procuro fazer com que as questões políticas inerentes aos nossos filmes não se sujeitem aos "tambores partidários", como diz Fernanda Montenegro. As relações humanas, as dúvidas existenciais dos personagens, os seus desejos e afetos guiam a narrativa. Questões políticas permeiam claramente um filme como Terra Estrangeira, mas é o retrato daquela humanidade que vem antes.
Tem construído uma obra entre o Brasil e outras latitudes. Sente necessidade de projetos mais distanciados da realidade do seu país?
Sinto-me às vezes mais atraído pelo que ainda não conheço do que por caminhos que já trilhei. Filmar nos Estados Unidos foi uma extensão dessa busca. Mas procuro sempre guardar o passaporte perto do corpo, sei que ali não é o meu país. O modelo de produção também não me serve, preciso filmar de forma mais improvisada, misturando o que é de natureza ficcional com o documental. E não tenho o desejo de morar longe do Brasil. Só o de viajar, de tempos em tempos, para voltar mais à frente.
A ideia de lugar está ainda presente no seu último documentário, Jia Zhang-ke, Um Homem de Fenyang [2014] O que é que o liga pessoalmente a este grande cineasta chinês e qual a importância de o retratar a partir da cidade natal?
Quando eu era criança, o cinema me fez entender que o mundo era muito mais amplo do que eu imaginava nos limites de minha casa, de minha classe social, na sala de aula. Continuo pensando que o cinema é antes de tudo aquilo que desvenda uma geografia humana e física específicas. Em um momento em que as imagens se multiplicam e horizontalizam, filmes como os de Jia Zhang-ke se tornaram ainda mais importantes para mim. Plataforma [2000], Pickpocket [1997], Still Life - Natureza Morta [2006] falam de como personagens se transformam no tempo, em um lugar específico, Fenyang, na província de Shanxi, no norte da China. Nos filmes de Jia, graças à sua capacidade de observação, aquela humanidade aparentemente tão distante da sua se torna, de repente, próxima. Fiz o documentário para entender melhor essa obra que tanto me atraia.
Gosta mais de realizar documentário ou ficção?
Ambas, e gosto dos projetos que permitem sobrepor essas formas narrativas. Geralmente, tento não encadear dois projetos de ficção. Penso que o documentário revigora o desejo de fazer cinema.
Tem vontade de, por agora, continuar a rodar em "terra estrangeira" e "pela estrada fora"?
Sim, e é o que me trouxe novamente à Portugal.
Pela Estrada Fora - hoje, 18.00, Centro Cultural Olga Cadaval; dia 20, 21.45, Monumental
Central do Brasil - dia 22, 14.30, Centro Cultural Olga Cadaval
Diários de Che Guevara - dia 24, 16.00, Espaço Nimas; dia 25, 18.00, Centro Cultural Olga Cadaval
Linha de Passe - dia 24, 19.00, Monumental
Jia Zhang-ke - Um Homem de Fenyang - dia 25, 15.00, Monumental
Abril Despedaçado - dia 25, 18.00, Espaço Nimas
Jia Zhang-ke - Um Homem de Fenyang , acompanhado da curta-metragem Socorro Nobre - dia 25, 15.00, Monumental
Abril Despedaçado - dia 25, 18.00, Espaço Nimas