Voltar a ser pessoa depois de estar fora da vida

Um dia adormeceram e acordaram na rua. E ali ficaram durante três, dez, quinze anos, até o destino lhes cruzar no caminho Teresa Duarte e Inês Almas com a promessa de uma casa para viverem. Vencida a "desconfiança saudável" de quem é "tantas vezes enganado nas ruas", as histórias de Vera, Sónia e Manuel têm um final feliz. E merecem ser contadas
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No dia 1 de outubro, Vera votou pela primeira vez na vida. "Ia pedir ajuda à associação, mas depois pensei: não, tu consegues. Nem sabia o que fazer... e depois estive atenta à televisão para confirmar que tinha feito tudo bem. É que não gosto de estar a chatear, custa-me pedir coisas - e eu nem preciso de muito para me orientar. Mas para o IRS vou pedir ajuda, não me atrevo a fazer aquilo sozinha." Sorri com os olhos todos, há ainda ali uma pontinha de vergonha mas também há orgulho em cada conquista que relata.

No jardim do Parque Eduardo VII, acabada de sair do trabalho onde está há oito meses, no Hotel Fénix, e onde até já dá formação a outras colegas, olha para a Dra. Inês, a testar se estará a impor-se - a aprovação despreocupada tranquiliza-a. É a primeira vez que Vera conta como foi parar à rua - "mas eu não deixava que as pessoas percebessem, não havia necessidade" - e como de lá saiu e reencontrou o seu caminho. O filho - que chegou a estar com ela debaixo de uma ponte em Entrecampos, até ela entender que a situação não era temporária e ter a coragem de ir a tribunal e entregar a criança, então com menos de 10 anos, ao pai - fez 18 anos há pouco tempo. "Tinha medo de que mo tirassem, mas agora ele é adulto, acabou Informática com boas notas e já vai começar a estagiar. Só me enche de orgulho! Já temos falado sobre tudo isto que me aconteceu, com calma. E ele já me procura, o que me deixa muito feliz."

Vera tinha 31 anos quando decidiu emigrar para Londres, com a mãe e o filho. Mas as coisas não correram bem e quando regressou, dois anos mais tarde, "foi uma desgraça". Sem nada de seu, ainda tentou juntar-se com o namorado mas "um dia as coisas complicaram-se muito e eu percebi que tinha de sair". Vivia em pensões e no tempo que passava a trabalhar tinha de deixar o rapaz sozinho, o que acabou por levá-la a tomar a pior decisão: "Deixei de trabalhar. Foi um disparate, claro, em pouco tempo fiquei sem dinheiro, andei de albergue em albergue e acabei por ir parar à rua - e o meu filho quis sempre estar comigo." Mas Vera ganhava consciência de que aquela situação era incomportável.

A falta de condições e perspetivas de um futuro melhor foi agravando a doença mental, até que o sentido de proteção típico de uma boa mãe a impeliu a consultar instituições como a APAV e a Comissão de Proteção de Menores. Queria perceber que hipóteses tinha o filho sem ela. E por fim, confrontada com a alternativa de ser internado numa instituição, decidiu assinar um acordo em tribunal e entregar a criança ao pai. "Nem pensei duas vezes!" Estava sozinha e na rua. Sem morada ou telefone, era impossível conseguir trabalho, ainda que poucos realmente percebessem que Vera era agora uma sem-abrigo - "uma assistente social ajudou-me a ir à AMI Porta Amiga e lá eu tomava banho, vestia-me, ninguém percebia que eu estava na rua, porque eu não deixava". Nunca aceitou ir para onde aqueles que conduziam as carrinhas que passavam à noite e lhe deixavam comida a queriam levar. "Eu vivia revoltada, gritava insultos por causa da minha situação, nem era para ninguém, era para o mundo."

[citacao:Manuel costuma andar pela rua mostrar a outros sem-abrigo quanto a vida dele mudou. "E que se comigo foi possível, com eles também é"]

Durante todo esse tempo, não falhava um domingo de visita ao filho, exceto quando sentia que estava demasiado desestabilizada. Nesses dias, telefonava. Até que teve o primeiro contacto com a Associação para o Estudo e Integração Psicossocial (AEIPS) e o projeto Casas Primeiro, escolhido para neste ano receber os fundos recolhidos no festival solidário Rock"n"Law.

"A princípio desconfiei, diziam que tinham uma casa para mim... era muito estranho. Mas acabei por ir lá ver - e ainda me perguntaram se eu gostava daquela casa, daquele sítio, ou se queria ver outras. Era tudo muito estranho mesmo! Mas resolvi aceitar - e foi logo aquela, não fosse desaparecer a oportunidade."

Aceitar a casa implicava aceitar a ajuda da AEIPS e durante um ano Vera cumpriu: "Ia às reuniões, à associação, mas nunca falava, nunca pedia ajuda."E também nunca largava a mala. "Não era de roupa, eram os meus documentos, fotografias do meu filho, coisas pessoais que eu não queria perder. Só comecei a desfazê-la há pouco tempo." Ri-se conforme vai ganhando confiança e o discurso se liberta, mas há partes da sua história que ainda magoam. "Um dia estava ali em frente à Casa da Moeda, e nesse dia estava muito revoltada, e o Dr. Ornelas [professor José Ornelas, do ISPA, fundador da AEIPS] veio ter comigo e perguntou se eu precisava de ajuda. Eu acalmei logo, mas disse que não, não precisava. Então ele disse que mesmo assim ele podia ajudar. E eu, nem sei porquê, aceitei. No dia a seguir fui internada. Estive um mês na clínica, medicada e em tratamento - claro que eu nunca queria tomar os medicamentos, queria era estar com o meu filho - e no dia da alta, a Dra. Patrícia [Jacob] aparece lá com a minha mala e foi então que se deu o clique. Pensei, mas para que é que eu ando sempre com isto atrás? Então comecei a andar mais leve, fui ganhando confiança, falando mais." ("Eles falam muito do Dr. João Ornelas porque ele está muito presente neste projeto. Todos o respeitam imenso", explica a presidente da AEIPS, Maria Teresa Duarte.)

[citacao:Mesmo ao aceitar a ajuda do Casas Primeiro, Vera manteve a desconfiança]

O processo levou o seu tempo e em certas alturas foi preciso um empurrão. Como para convencê-la a fazer um curso ou um estágio - foi preciso Patrícia, da AEIPS, inscrevê-la e dar o facto como inevitável. Mas uma vez de volta aos carris, Vera não parou. Passou pelo Supercor, pela Católica, começou a organizar a vida, a pensar de forma diferente e tudo começou a melhorar. "Ainda entro em stress com a desorganização, mas faço os meus exercícios. E começo a atrair outras oportunidades. Até me assusto com as propostas que me fazem!"

Há oito meses no grupo hoteleiro, desde que começou a estagiar que Vera tem um pé-de-meia para o filho - "ele não lhe toca, mesmo quando eu digo para ele usar para comprar as coisinhas dele. Tem uma cabeça muito boa". Ela própria diz que se sente uma pessoa muito diferente. Ainda acorda a meio da noite a pensar se será verdade tudo quanto está a acontecer-lhe de bom, mas reconhece que é a sua oportunidade e quer agarrá-la. Até já se atreve a fazer planos: "Gostava e tirar um curso de informática, que vai fazer-me falta para o futuro, porque sei que um dia vou querer sonhar mais alto. E arranjar a minha casinha, o mais próximo do mar possível, para poder, mesmo no inverno, ir até à praia caminhar."

Vera é a prova de sucesso do projeto Casas Primeiro, criado em 2010 pela AEIPS - associação de solidariedade que há 30 anos desenvolve programas e serviços de suporte a pessoas com doença mental, em habitação, educação e emprego -, mas não é caso único. Que o diga Manuel, que se reencontrou com a vida depois de 15 anos nas ruas, com um passado que junta a toxicodependência e a esquizofrenia. É um veterano na associação, faz questão de conversar com outros sem-abrigo, de lhes contar a sua história - "para mostrar que se foi possível comigo, também é com eles". E vê-se bem que é um homem feliz. Foi um dos primeiros a serem apoiados no âmbito deste projeto e conta que quando lhe disseram que tinham uma casa para ele nem acreditou. "Depois de 15 anos na rua, senti-me autónomo, respeitado, que tinha valor. Isto deu-me uma força enorme. Nas ruas eu não tomava medicação, andava doido sem acompanhamento e o Casas Primeiro ajudou-me a voltar a encaixar-me na realidade. Hoje tenho médico, acompanhamento, ajudam-me e ganhei uma amiga na Dra. Inês."

[citacao:Durante mais de um ano, nunca larguei a minha mala. Não eram roupas, eram os meus documentos, fotografias do meu filho, coisas pessoais]

Formada em Psicologia e coordenadora do programa Casas Primeiro, Inês Almas já tirou muitos sem-abrigo da rua. "A maior dificuldade decorre do facto de serem pessoas que já estão afastadas há muito tempo ou que nunca passaram por um contacto com serviços ou que tentaram todos e nunca conseguiram. Mas a abordagem na rua é só o princípio do nosso trabalho, em que explicamos quem somos, o que fazemos." E nem sempre é fácil convencer quem não tem casa que estão ali para lhe dar uma vida. Manuel é certeiro: "Quando a esmola é grande, o pobre desconfia. E nós, nas ruas, somos muitas vezes enganados, por isso desconfiamos."

"É uma desconfiança saudável", concorda Inês Almas. "São maioritariamente pessoas que estão fora da medicação, que têm problemas de doença mental, isso também dificulta." E se há quem aceite logo, com a maioria é preciso fazer um percurso. "Levamo-los a visitar a casa sem compromisso, perguntamos se têm algum bairro que prefiram ou onde não gostassem mesmo de estar, mostramos-lhes fotografias das casas disponíveis, o contrato que celebramos com as pessoas, enquadramos a situação e as pessoas por fim percebem."

O projeto é financiado pela Câmara Municipal de Lisboa, no âmbito do apoio a sem-abrigo, explica Maria Teresa Duarte, presidente da associação. "Ganhámos o concurso para apoiar 50 casas e com a perspetiva de aumentar, porque é um projeto inovador - havia comunidades de inserção e centros de alojamento, mas aqui a ideia é dar resposta a pessoas que estão há mais tempo na rua, que não respondiam aos serviços, que não queriam respostas de grupo, e com problemas de saúde mental. A grande novidade foi, em primeiro lugar, passar as pessoas da rua para uma casa individual. Antes defendia-se que as pessoas tinham de seguir um processo até à reintegração e nunca mais lá chegavam. Este programa funciona porque têm logo a sua casa, um espaço individual que não têm de partilhar."

Não se trata de casas camarárias - "para essas a lista de espera é enorme e têm o problema de, sendo construídas em bairros sociais, não promoverem tão facilmente a integração", explica Teresa Duarte. As habitações que a associação distribui são casas dispersas na comunidade, nos bairros regulares de Lisboa, arrendadas a senhorios privados. "Assim conseguimos integrá-los na sociedade, têm vizinhos como o resto de nós, estão pelo tempo que precisarem."

Para Manuel, isso foi fundamental. "Eu fui para a rua quando tinha 30 anos, porque morreram os meus pais e o resto da família não queria saber de mim. Agora ganhei uma nova família, converso com os vizinhos, que estão sempre preocupados comigo e são amigos. Sabem que eu sou esquizofrénico e toxicodependente recuperado há 21 anos, e sou respeitado, tenho autonomia de ir para casa quando quero, tenho os meus horários, faço as refeições na AMI Porta Amiga e estou ocupado todos os dias das 09.00 às 17.00." Na associação há atividades como pintura, azulejo, um jornal, mas Manuel gosta mesmo é da horta. "Gosto de conviver com a natureza e agora, apesar de reformado, vou começar a trabalhar como jardineiro no Júlio de Matos. Estar no meio do verde inspira-me a escrever e a ler - leio muito. Sou crente, leio a Bíblia, estou em paz. E a minha autoestima aumentou." Na "Dra. Inês" já vê uma amiga, a quem recorre sempre que precisa de desabafar - "Ela é compreensiva, apoia-nos psicológica e materialmente e está sempre disponível se precisamos de alguma coisa. É muito querida." E talvez isso o tenha inspirado no seu sonho. O que Manuel gostava de ainda poder fazer? "Gostava que me saísse o Euromilhões, para poder ajudar mais gente, dar mais casas."

Como dizia Inês Almas, o trabalho da associação não termina com a entrega da casa. A AEIPS tem equipas que, no início, acompanham diariamente as pessoas apoiadas, levam-nas ao médico, ajudam-nas a tratar de documentos, a regularizar a sua situação no hospital, a obter subsídios a que têm direito, a estudar e encontrar trabalho. Tudo o que não conseguiriam fazer sozinhos - e muito menos sem uma morada. Coisas tão simples como a marcação de uma consulta no hospital são impossíveis para um sem-abrigo. Quando ganham autonomia, o apoio mantém-se - sobretudo ao nível emocional e psicológico, mas a periodicidade é menor, ainda que qualquer deles possa procurar a associação 24 horas por dia, 365 dias por ano.

[citacao:Gostava era que me saísse o Euromilhões para poder ajudar mais gente, dar mais casas]

É o caso do Manuel. E da Sónia, que provavelmente viu muitas vezes nos arredores do Largo Camões, em Lisboa. "Ela foi difícil de convencer e mesmo depois de estar em casa dizia que só estava ali por uns dias..." Sónia ri-se com a memória de Inês. Hoje reconhece que ter uma cama fez toda a diferença, depois de dez anos a viver na rua, "dos 18 aos 28", precisa. "Quando tive a minha casinha, eu dormia todo o dia, não conseguia levantar-me. Na rua, acordava muito cedo e ia dormir muito tarde. Ao princípio as pessoas mandavam-me para casa, achavam que eu estava a gozar. Demorou a perceberem que eu dormia ali."

Tinha 10 anos quando a mãe morreu e foi viver com o pai - que a mandou para a rua três anos depois, obrigando-a a procurar abrigo em casa do padrasto. "Era o único sítio que eu tinha. Mas uma semana depois de lá estar uma amiga convidou-me para ir viver com ela, que arranjávamos trabalho e tudo. Tínhamos as duas 13 anos, mas ela era muito esperta, conhecia o senhorio, tinha contactos e eu aceitei. Estivemos uns dias na casa da mãe dela e lá arranjámos um trabalhinho e dois meses depois já tínhamos um estúdio alugado." Trabalhavam em restaurantes, como ajudantes de copa, e tudo correu bem, até Sónia fazer 18 anos. Despedida por ter medo de arranjar enguias vivas e depois de a amiga "ter de se ausentar", não tinha como pagar a renda nem para onde ir. "Conhecia ali o Bairro Alto e achava aquilo bom, então fiquei ali. Era movimentado, alguém havia de me dar qualquer coisa - porque eu pensei nisso, precisava de comer."

Nunca lhe passou pela cabeça recorrer a uma instituição porque nem sabia que existiam. "E mesmo as pessoas que sabem muitas vezes não querem ir, acomodam-se àquilo, não querem regras nem nada", explica Manuel. Troca experiências com Sónia: "Eu conheço quem só durma no albergue e durante o dia faça a sua vida. Mas isso é agora, na altura nem sabia que isso existia, ninguém falava nisso. Era só, "coitadinha, "tás na rua"." Quando lhe falaram na possibilidade de ter uma casa, não acreditou que fosse a sério. "Foram lá aparecendo, mas eu achava aquilo muito estranho - porque uma casa é muito! Há pessoas que vivem em barracas e vivem pior do que eu vivia na rua." A desconfiança vinha também de ter dificuldade em aceitar que queriam ajudá-la. Se até as esmolas e os poucos pertences desapareciam enquanto dormia... "Nos últimos dois anos, era terrível. Todos os dias me roubavam." E isso pesou na decisão de aceitar a ajuda do Casas Primeiro.

[citacao:Eu nem sabia que havia albergues. Só me diziam, "coitadinha, estás na rua". Quando me ofereceram uma casa, achei aquilo muito estranho]

Durante quatro anos, viveu perto do bairro que melhor conhecia. Depois pediu para se mudar, para começar onde ninguém a conhecesse - "e os vizinhos são muito simpáticos. Dão-me um suminho, convidam-me para o café..." "Curam-nos a timidez à força", ajuda Manuel. De então para cá, Sónia já tirou a equivalência ao 9.º ano, já trabalhou em cozinhas, a ajudar idosos. Agora está à procura de emprego - "gostava de ir para um restaurante, que é o que tenho mais habilidade para fazer" - e vive do subsídio estatal. Mas está tranquila e encaminhada para recuperar a sua vida.

"Esta ideia de não pormos o tratamento como condição para terem uma casa resulta de facto, faz toda a diferença, porque é onde as pessoas descansam e se humanizam de novo." Maria Teresa Duarte explica que a normalização é feita a todos os níveis. Por exemplo, a partir do momento em que a pessoa começa a ter rendimento, passa a contribuir com 30% para a renda. "E tem de respeitar regras do condomínio e aceitar o nosso acompanhamento."

Muitas vezes, são pessoas a precisar de serviços de urgência, têm doenças não diagnosticadas e muito menos tratadas. "E aqui tudo isso muda, ficam saudáveis, física e psicologicamente, e podem ser reinseridas na sociedade, recuperar as suas vidas." Razão pela qual a escolha do Rock"n"Law para apoiar esta causa e o Alto Patrocínio do Presidente da República são tão importantes. "Além da ajuda financeira fundamental para tirar mais gente da rua, é uma oportunidade de divulgarmos o nosso trabalho. E nisso, o PR também tem dado um boa ajuda, ao trazer visibilidade para a nossa causa", conclui a presidente da AEIPS.

É a prova de que problemas sociais que julgamos irreparáveis podem ter solução. Ficou com vontade de ajudar? Basta fazer um donativo em dinheiro, no site rocknlaw.pt, ou contactar a AEIPS para saber onde entregar donativos, mobílias ou até roupa. "Para homem, já temos o apoio da Mr. Blue. Era bom encontrar quem desse roupa de senhora."

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