Quase um ano e meio depois de ter dado entrada no Parlamento a petição que defendia a residência alternada como regime regra para os filhos de pais separados, a Assembleia da República debate esta quarta-feira e vota amanhã cinco projetos de lei sobre esta matéria. Uma mão-cheia de propostas, com alguma proximidade entre si, que deixa antecipar que a residência alternada vai ganhar peso no sistema jurídico nacional. Mas longe dos termos propostos na petição que desencadeou este processo..Os projetos de lei com que PS, PSD, BE, CDS e PAN se apresentam a debate nesta quarta-feira têm como objetivo comum inscrever a residência alternada na lei de uma forma expressa - atualmente, o Código Civil não faz referência a este regime, nem para o incentivar nem para o proibir (uma omissão que permite que já seja adotado pelos tribunais portugueses). A força com que este regime entrará na lei é que difere nos vários textos - PS, Bloco e PAN querem que a residência alternada seja o modelo preferencial a adotar pelos juízes, desde que isso corresponda ao "superior interesse" da criança. PSD e CDS são mais recuados, não estabelecendo qualquer hierarquização, mesmo condicionada..A petição que esteve na origem deste processo, promovida pela Associação Portuguesa para a Igualdade Parental e Defesa dos Direitos dos Filhos, ia bastante mais longe que qualquer um destes projetos, defendendo a instituição da residência alternada como regime regra. O que significa que este seria, por defeito, o modelo a adotar pelos tribunais, que só poderia ser afastado em casos excecionais e mediante justificação fundamentada do juiz..A proposta, que deu entrada no Parlamento em julho de 2018, abriu rapidamente uma acesa polémica. Mais de 20 associações subscreveram uma carta aberta, dirigida a todos os grupos parlamentares, defendendo que o Parlamento não deve impor a residência alternada, devendo as famílias ter liberdade de escolha. A Associação Portuguesa de Apoio à Vítima (APAV), Associação Portuguesa de Mulheres Juristas, Associação de Mulheres contra a Violência ou a Capazes foram algumas das entidades que se manifestaram contra, alertando para a possibilidade de esta figura vir, por exemplo, a beneficiar agressores em contexto de violência doméstica..Agora, perante os projetos de lei que estão em cima da mesa, a Associação Portuguesa de Apoio à Vítima considera que os perigos que apontou então estão mitigados, mas continua a defender que a alteração à lei deve ter uma "redação o mais aberta possível" para permitir que cada caso possa merecer uma análise aprofundada..Frederico Marques, da APAV, faz a ressalva de que "na maioria dos casos" a residência alternada "é o regime mais favorável para a criança", na medida em que promove a convivência com ambos os progenitores. "O tipo de situações em que a APAV tem contacto com este problema é uma realidade diminuta, nós intervimos naquela margem de casos em que há uma situação de violência", prossegue, mas para acrescentar que estas situações têm de ficar salvaguardadas. "O que tememos é que um regime preferencial leve o aplicador do Direito a confiar excessivamente nesse regime", diz ao DN..Sobre as ressalvas que os partidos introduziram nas suas propostas, nomeadamente quanto à não aplicação deste regime quando estejam pendentes processos por violência doméstica, Frederico Marques sublinha que "pode não haver pendência", mas manter-se o problema de fundo. "A experiência diz-nos que, muitas vezes, estes processos por violência doméstica são arquivados. Mas o facto de um processo deixar de estar pendente não significa que a residência alternada passe a ser uma solução adequada", sublinha, insistindo que é "sempre necessária uma análise profunda" de cada caso..A Associação Portuguesa de Mulheres Juristas, que também subscreveu a mesma carta, reserva uma posição mais concreta para a fase da discussão na especialidade (em que os projetos são discutidos artigo a artigo, antes da votação final), altura em que entregará um parecer no Parlamento sobre esta matéria. Mas a presidente, Teresa Féria, sublinha que a posição da associação é a de que "não deve haver um regime preferencial, seja ele qual for" - "A lei deve fixar o conjunto de regimes que podem ser aplicados" e a decisão sobre qual é o melhor modelo em cada caso concreto deve caber ao decisor, ou seja, ao juiz..O que defendem os partidos sobre a residência alternada.Dos cinco textos que os parlamentares vão debater esta quarta-feira, três dão primazia ao regime de residência alternada. Os dois restantes, do PSD e do CDS, dizem apenas que o tribunal "pode determinar" este desfecho..No texto do PS pode ler-se que o "tribunal privilegia a residência alternada do filho com ambos os progenitores, independentemente de mútuo acordo nesse sentido e sem prejuízo da fixação de alimentos, sempre que, ponderadas todas as circunstâncias relevantes, tal corresponda ao superior interesse daquele"..Para o Bloco, o tribunal "deve decidir pelo modelo de residência alternada da criança" com cada um dos progenitores "sempre que, ponderadas todas as circunstâncias relevantes atendíveis, este corresponda ao superior interesse da criança". O BE acrescenta que este regime "pode ser julgado contrário" aos interesses das crianças nos casos em que haja "pendência de processos relativos ao crime de violência doméstica", quando for "decretada medida de coação, pena acessória de proibição de contacto entre progenitores ou decisão de condenação" ou quando "estiverem em grave risco os direitos e a segurança de vítimas de violência doméstica e de outras formas de violência em contexto familiar". A proposta dos bloquistas também defende que, salvo razões ponderosas, a criança deve ser ouvida no processo..Ressalvas que também constam do projeto do PAN, e que foram acrescentadas ao texto que o partido já tinha entregado na anterior legislatura, para ir ao encontro dos alertas de que este regime pode transformar-se numa arma para os agressores, contra as vítimas de violência doméstica. O projeto do PAN defende que o tribunal "deverá privilegiar o modelo de residência alternada da criança com cada um dos progenitores, sempre que, ponderadas todas as circunstâncias relevantes atendíveis, estas correspondam ao superior interesse da criança", nomeadamente "tomando em consideração a sua idade, necessidades e interesses"..Já o texto do PSD diz que o "tribunal pode determinar a residência alternada do filho com cada um dos progenitores, independentemente de acordo e sempre que, ponderadas todas as circunstâncias relevantes atendíveis, tal corresponda ao superior interesse daquele"..O projeto do CDS também não fala em regime preferencial, estabelecendo que o "tribunal pode determinar a residência alternada do filho com cada um dos progenitores, nos termos acordados entre ambos, ou, ponderadas as circunstâncias concretas e o superior interesse daquele, nos termos que forem determinados pelo tribunal"..Deputados têm 24 minutos para debater.A petição que desencadeou este processo já subiu a debate em plenário a 15 de novembro, mas os partidos optaram então por não agendar os projetos de lei. O PAN, partido que agendou agora a discussão, sublinhou então a necessidade de o debate ser feito com uma "grelha de tempos mais alargada, onde todos os partidos intervenham". E é um facto que todos os partidos vão intervir na tarde desta quarta-feira, inclusive os deputados únicos, mas não com muito tempo - o debate terá apenas 24 minutos..Já as votações vão decorrer na quinta-feira. Muitas vezes, nas matérias em que há várias propostas com proximidade entre si, os textos baixam a trabalho na especialidade sem serem sujeitos a votação, mas para já os partidos não têm ainda uma decisão fechada. PS, Bloco e PAN, que têm as propostas mais aproximadas, formam maioria. Já o maior partido da oposição manifesta abertura para o diálogo, mas mostra reservas a que a residência alternada venha a ser adotada como regime preferencial. "O Direito da Família é o direito do bom senso. Tem que haver bom senso. Estar a por uma presunção jurídica ou um princípio é um ónus muito grande. Quem anda nos tribunais sabe que o tribunal não consegue, depois, elidir essa presunção", que obriga a fundamentar uma decisão que seja em sentido contrário, diz ao DN Mónica Quintela, deputada do PSD..A inscrição expressa na lei da residência alternada como regime preferencial foi a solução defendida num parecer enviado ao Parlamento pela Procuradoria-Geral da República, ainda no decurso da tramitação parlamentar da petição, em 2018. Nesse documento, a PGR propõe mesmo que o Código Civil passe a incluir uma nova alínea, estabelecendo que "o tribunal privilegiará a residência alternada do filho com cada um dos progenitores, independentemente de acordo e sempre que, ponderadas todas as circunstâncias relevantes atendíveis, tal corresponda ao superior interesse daquele"..Uma formulação que vem na "linha da recomendação" do Conselho da Europa (ponto 5 da Resolução 2079), que solicita aos Estados membros que assumam o princípio da residência alternada no seu ordenamento jurídico, limitando as exceções a "casos de negligência, abuso ou violência doméstica", sublinha o documento da PGR..O que é a residência alternada?.O regime de residência alternada prevê que os filhos vivam com os dois pais, habitualmente passando uma semana em casa de um, outra em casa de outro. Mas os períodos de coabitação com cada um dos progenitores não têm de ser estritamente proporcionais - a petição entregue na Assembleia da República refere que podem ir de 33% a 50% do tempo. Ou seja, a criança deve passar um mínimo de cerca de dez dias com um dos pais..Um dos grandes argumentos a favor desta solução é que permite que as crianças ou jovens mantenham a vivência com ambos os progenitores - e vários estudos já apontaram que isto é benéfico para os filhos. Em sentido contrário, é apontada a instabilidade na vida das crianças, bem como a dificuldade de implementação deste regime num cenário de conflitualidade entre os pais. Outra dúvida, que é muitas vezes levantada a este regime, prende-se com as questões logísticas e a dificuldade de implementar esta solução quando, por exemplo, os dois pais vivem relativamente longe um do outro..Como alguns dos projetos sublinham, a residência alternada não significa, necessariamente, que não haja lugar à prestação de alimentos por parte de um dos progenitores, o que depende da situação financeira de cada um.