O FC Porto sagrou-se na passada quarta-feira campeão nacional de futebol. É um momento importante para a história da instituição, mas é sobretudo uma altura de imensa alegria para mim e para todos os adeptos do clube. A minha vontade era encher esta página de frases de paixão clubística, de provas irrefutáveis de como ser do FC Porto fazia de mim e dos meus irmãos de tribo seres especiais, de elogios ao presidente do meu clube, aos treinadores e aos jogadores.
Vou poupar a isso os meus estimados leitores de outros clubes, mas não sabendo quais são as preferências clubísticas deles, tenho por certo que a maioria gosta ou, pelo menos, acompanha o futebol. É que há quem lhe dedique mais ou menos tempo, mais ou menos atenção, mas o futebol faz parte da vida de muitos milhões de portugueses e em várias dimensões.
Provavelmente, a vertente menos importante é a do jogo propriamente dito. Sendo o desporto com as regras mais simples, o mais fácil de entender e o mais belo jamais criado, é fácil gostar e discutir sobre os seus vários aspetos técnicos e táticos.
Aliás, há poucas coisas mais estúpidas do que ouvir os profissionais do setor a insurgir-se contra as opiniões dos adeptos, por não lhes reconhecerem habilitações. Uma das principais razões para o futebol ser a modalidade mais popular do mundo é por poder ser tão falado: é um assunto simples de conversa e, como tem uma quantidade enorme de pormenores e já muita história, torna-se num assunto interminável. Os tais profissionais deviam agradecer a todos os santinhos sermos tantos e com tantas opiniões, pois é o que faz que muitos sejam tão bem pagos.
Ouvi um dirigente italiano dizer que o futebol é o melhor assunto do mundo, o único problema são os noventa minutos de jogo.
Portugal é um verdadeiro fenómeno no que diz respeito ao jogo. Somos um país pequeno, pobre e com poucos praticantes. No entanto, temos os melhores jogadores do mundo espalhados pelos maiores clubes, treinadores conceituadíssimos, dirigentes reconhecidos, equipas portuguesas que se batem de igual para igual com outras com um orçamento infinitamente superior e vencem.
A verdade pura e dura é que o futebol é a atividade em que, nas últimas décadas, Portugal mais se destaca.
Em nenhuma outra as suas empresas e os seus profissionais foram tantas vezes os melhores, sabendo que a concorrência é global, fortíssima e riquíssima.
O futebol, porém, transformou-se em algo que está muito, muito para lá de um simples desporto. É um fenómeno comunitário, agregador, identitário. Quando se fala das paixões que gera, da irracionalidade que provoca (e não há dúvida disso), dos selvagens sentimentais, de que falava Javier Marías, que nós adeptos de futebol somos, está-se num nível em que o jogo é a maneira do clube se exprimir como catalisador de vontades, desejos e sentimentos de pertença. Aliás, quando ouço alguém dizer que gosta de um bom jogo e não liga a clubes ou às discussões futebolísticas, fico imediatamente a saber que de facto não gosta de futebol.
Os clubes são um repositório de patrimónios, diferentes e com especificidades próprias. Uns mais ligados a cidades ou regiões, outros a grupos sociais, outros mais abrangentes ou mais exclusivos, há uma infinidade de características próprias e especiais de cada um deles.
É verdade que a perda de referências e a decadência das instituições intermédias (como as igrejas e outras organizações cívicas) ajudou a que o futebol através dos clubes tomasse esse lugar quase de forma exclusiva, mas tomou-o. Os clubes de futebol são das pouquíssimas associações em que as pessoas participam ativamente nos vários aspetos da sua organização, más ou boas, são das poucas escolas de como participar numa causa comum. E, claro, como em qualquer coisa de que fazemos parte, vivemos as derrotas, as vitórias e os problemas como nossos.
A dimensão comunitária do futebol está neste momento sob um violento ataque.
Disfarçados de apreciadores do futebol espetáculo e propondo a americanização do desporto apareceram os milionários que compram clubes e prometem jogadores fantásticos e vitórias. A contrapartida é a alma do clube. Os adeptos deixam de contar, passam a ser meros fãs sem poder de participação nem voz. Quer-se transformar o futebol num mero concorrente do circo ou do cinema matando o seu carácter único e afastando-o das suas comunidades.
O outro ataque é menos perigoso mas muito desgastante: é o de gente com presença no espaço público (mesmo homens que vivem do futebol) que está constantemente a vilipendiar o futebol como se a atividade fosse uma espécie de sucedâneo da máfia e todos os seus dirigentes perigosos cadastrados.
Claro que como qualquer outra atividade que mexe com o bem comum tem problemas: atrai gente pouco recomendável e que explora a paixão dos adeptos em proveito próprio, tem corrupção e criminalidade comum. Estranho seria se não tivesse, é uma atividade humana.
Ainda há pouco tempo, fui acusado de ser uma espécie de malfeitor por pertencer ao conselho consultivo do meu clube. Uma das minhas faltas era estar ao lado de políticos que também pertencem a esse órgão social.
Segundo a cartilha antifutebol, os políticos deviam afastar-se dos clubes. Ou seja, deviam estar longe de algo que os seus eleitores adoram, de um aspeto importante na vida dos cidadãos. A lógica disto transcende-me. Sendo algo importante para a comunidade e sendo os políticos também cidadãos, por que diabo devem afastar-se?
O futebol e os clubes são do melhor que temos neste país. Cuidemos bem deles, arranquemos as ervas daninhas e não deixemos que toquem no seu fundamental papel na comunidade.
Apesar de a acusação só ter sido agora conhecida, graças às costumeiras fugas já tínhamos uma ideia muito razoável do que seria aduzido pelo Ministério Público. Chega agora o momento de sabermos o que os arguidos, nomeadamente Ricardo Salgado, têm para dizer em sua defesa.
Dando de barato que do que consta na acusação se prova, pelo menos, metade, tivemos durante muitos anos um país e as suas principais instituições aprisionadas por uma organização privada. Uma que, segundo o Ministério Público, seria criminosa. Vamos ter de esperar pela produção de prova. Pela minha parte, estou convencido de que aconteceram coisas muito graves, mas veremos qual a dimensão.
O que me parece que já está a suceder é algo de costumeiro em Portugal: arranjar um bode expiatório de todos os nossos males. Já houve outros, mas, neste momento, Ricardo Salgado é o novo culpado disto tudo.
José Maria Ricciardi, o português mais inocente da história, perdão, o português mais distraído da história, perdão, o português mais ingénuo da história, acha que a deputada Mariana Mortágua "devia ter vergonha e desaparecer de vez".
O humor involuntário, já se sabe, é o melhor. O senhor Ricciardi achar que uma cidadã eleita pelo povo, que nunca administrou empresas suspeitas de graves irregularidades, que nunca pertenceu a comités de crédito que não eram propriamente cuidadosos, que nunca fez dinheiro circular por offshores, devia desaparecer, ter vergonha e reduzir-se ao silêncio é, no mínimo dos mínimos, de matar de riso o mais sisudo dos homens.
Mas admitindo que tanto descaramento é capaz de ofender por aí alguém de espírito menos reinadio, talvez não fosse má ideia recomendar ao senhor José Maria Ricciardi mais contenção. É que vê-lo por aí a lançar bitaites como se nada tivesse acontecido ao grupo onde sempre trabalhou é capaz de ser de mais.