Vitória marroquina, risco ibérico

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A grande incógnita agora é a reação da Argélia, que chamou o seu embaixador em Madrid para consultas sobre o apoio aberto de Espanha a Marrocos na questão da soberania do Sara Ocidental. E essa reação por parte do país que é o tradicional patrono da Frente Polisário pode sempre incluir a arma do gás natural, como, aliás, aconteceu há poucos meses, no âmbito das desavenças entre Argel e Rabat, com o encerramento do gasoduto que abastecia a Península Ibérica via Marrocos, ficando apenas em funcionamento aquele que atravessa o Mediterrâneo ligando diretamente a Argélia a Espanha.

Para Marrocos, a decisão, conhecida sexta-feira, de Madrid considerar como a solução mais realista para o Sara uma vasta autonomia sob governação de Rabat é uma vitória diplomática de primeiríssimo plano, só comparável ao reconhecimento da soberania marroquina pelos EUA nas últimas semanas da presidência de Donald Trump. Tradicionalmente, Marrocos tem contado com o apoio francês, o que facilita as excelentes relações do reino com a UE, mas a nova posição espanhola, vinda da antiga potência colonial no Sara, que abandonou o território nos tempos finais da ditadura franquista, tem um valor próprio. E até poderá levar mais países europeus a considerar que tem mesmo de haver uma alternativa ao referendo de autodeterminação previsto pela ONU, nunca realizado por desacordo entre Rabat e Polisário sobre quem tem direito a votar. A trégua que vigorava desde 1991 entre Marrocos, que controla quase todo o território saraui, e os independentistas baseados em Tindouf, no vizinho deserto argelino, foi quebrada pela Polisário no ano passado, por considerar que o impasse estava a ser aproveitado por Rabat para consolidar a sua presença. Pelo menos duas dezenas de países abriram já consulados em Layounne e Dakhla, segundo reivindica Marrocos.

Foi em 2007 que Mohammed VI apresentou um plano para resolução do conflito no Sara que passava pela oferta de vasta autonomia ao território, que é três vezes maior do que Portugal e que no caos da retirada espanhola chegou a ser teoricamente dividido com a Mauritânia (que depois desistiu das reivindicações). Mesmo sem mudança oficial no que diz respeito ao referendo, a ONU passou então a evitar a insistência neste, por saber que a fluidez das fronteiras na região nos séculos anteriores levava a que muitas tribos pudessem reivindicar direito de voto, incluindo algumas que se fixaram mais a norte. Também os marroquinos vindos com a Marcha Verde de finais de 1975 reivindicam direitos e há ainda que contabilizar quantas pessoas vivem nos campos de refugiados controlados pela Polisário na Argélia .

Um outro primeiro-ministro espanhol, o também socialista Rodríguez Zapatero, tinha dado sinais de poder aceitar a solução marroquina, mas não de forma tão clara como agora Pedro Sánchez. E a memória do miniconflito em 2002 por causa do ilhéu de Perejil/Leila, no estreito de Gibraltar, com o conservador José Maria Aznar, inibiu Madrid de gesto generoso com Rabat durante a era de Mariano Rajoy, também conservador.

Sánchez avançou com este apoio às teses marroquinas depois de uma séria crise bilateral no ano passado, por acolhimento em Espanha, para tratamento médico, do líder da Polisário, Brahim Ghali. Na época, Ceuta, uma das duas cidades espanholas encravadas no Norte de África, foi assolada por milhares de migrantes, um sinal de que sem a colaboração de Marrocos aquela porta de entrada na UE seria impossível de manter sob controlo. O desagrado de Rabat levou mesmo ao afastamento da ministra dos Negócios Estrangeiros espanhola, por ter autorizado a vinda de Ghali, e houve certas declarações a associar a Catalunha ao Sara, apesar de Marrocos sempre ter defendido a integridade do Estado espanhol perante o independentismo catalão. Tudo isto, somado aos interesses económicos de Espanha em Marrocos, terceiro parceiro fora da UE, a necessidade de evitar tensões em Ceuta e Melilla e até a posição dos EUA (Joe Biden não desfez o reconhecimento por Trump, que implicou também relações diplomáticas entre Marrocos e Israel) explicam a nova posição de Madrid, apesar dos riscos.

E quais são os riscos para Espanha? Crise com a Argélia que afete o fornecimento de gás num momento em que a Europa não-ibérica se debate com o dilema de importar ou não gás russo, apesar das sanções pela guerra na Ucrânia. Um risco que pode afetar Portugal. Aliás, há outro ponto a ter em conta pela diplomacia portuguesa: seguir ou não o exemplo espanhol? É de esperar a pressão marroquina.

Diretor adjunto do Diário de Notícias

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