"Não comam nada que não saibam como é feito. Nada!"

Tem o carro pronto para as férias, à porta da Tasca da Esquina, em Campo de Ourique. A dada altura, Vítor Sobral começa a receber telefonemas da neta, ansiosa pela partida. Não tardaria a seguir viagem com a neta e o filho mais novo, mas não vai dar descanso aos tachos. Antes pelo contrário.
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Começou em miúdo, na cozinha da casa dos pais e dos avós. Aos 3 anos untava formas, na adolescência cozinhava petiscos com os amigos, aos 18 anos entrou na Escola de Hotelaria e Turismo, no Estoril. Sempre soube que queria ser cozinheiro, profissão que desde cedo lutou por dignificar e defender. Tem um travo alentejano na voz - é natural de Melides -, mas por vezes atravessamos o Atlântico, até ao Brasil, quando ele diz ruim com um bocadinho de samba. Vítor Sobral é uma referência da gastronomia portuguesa, mas não está num pedestal. É fácil encontrá-lo nos seus restaurantes ou entre as bancas de um mercado, de olhar curioso.

Começou a carreira culinária no Iate Ben, em Cascais, passou pelo Alcântara Café, pelo Café Café, Cervejaria Lusitana, Clube de Golfe da Bela Vista e restaurante Terreiro do Paço. Já recebeu vários prémios, entre os quais a comenda da Ordem do Infante D. Henrique. Em 2009, abraçou os projetos em nome próprio, como a Tasca da Esquina, onde nos sentámos à conversa. Foi obrigado a tornar-se empresário, o que o afasta daquilo que gosta de fazer, que é cozinhar. Em setembro abre um novo espaço na capital, o Talho da Esquina, em São Bento, com carnes nacionais.

Seja pão, petiscos, peixe ou carne, a sua preocupação é sempre a mesma: qualidade. Quer que as pessoas saibam comer, que se preocupem com a alimentação, que percam a preguiça de pensar naquilo que põem na mesa: "O pão passou a ser pré-congelado, tudo industrializado, e depois andam muito preocupados porque há muitos cancros." E nem é preciso ir longe: o país tem boa matéria-prima, há que a trabalhar.


Como é que guarda as suas receitas?
Eu tenho há muitos anos organizada uma base de dados de receitas. Talvez seja a única coisa com a qual tenho realmente cuidado de ter cópia de segurança, as receitas, porque no fundo é uma vida de trabalho, embora tenha de lhe confessar que, como autor e coautor, vou editar o 24.º livro. Mas isso é dez por cento das receitas que tenho, os livros que tenho editados.

E toma notas?
Dantes fazia papelinhos, hoje tenho esta vantagem das notas [no telemóvel].

Escreve logo a receita toda ou algo como "isto vai bem com isto"?
Depende. Posso escrever a receita para não me esquecer qual é. Mas posso ter visto alguma coisa e escrevo logo para não me esquecer como será a confeção, mas a maior parte das vezes é as ligações, o que vai bem com quê.

E depois vai para a cozinha e põe em prática
Exatamente. Quando faço cartas novas vou aos meus últimos rabiscos todos. Quando faço, faço tudo de seguida. Vou dar-lhe um exemplo. Agora estou a montar a carta do Talho [da Esquina]. O que faço quando começo? Tenho aqui Ideias Talho [mostra as notas do telemóvel], tenho uma ficha técnica em papel, escrevo as coisas todas, depois vou testar - porque não acredito em fichas técnicas que não sejam pesadas e em que não ponhamos as temperaturas, caso sejam coisas confecionadas no forno. Depois de estar tudo, acerto, e a partir daí é que entra no processo das receitas e tem dois caminhos: a pasta do talho e a pasta das receitas gerais.

E quem testa?
Normalmente, as equipas, somos nós que testamos, quem vai trabalhar com o produto é quem testa em primeiro lugar, embora tenha de lhe confessar que, sempre que abro restaurantes, o que gosto de fazer é ir chamando pessoas aos poucos, e, quando sentir que o serviço está afinado, abro ao público. No Talho da Esquina [em frente à AR, na Rua Correia Garção] vai acontecer exatamente isso.

Numa esquina.
Não é bem numa esquina.

Vai ser o talho quase da esquina...
Da Esquina é marca. Inclusive, tive há pouco tempo um problema, pus um processo em tribunal. Tenho a marca Da Esquina registada na América Latina, África e Europa e tenho essa marca registada há dez anos. Supostamente, o Da Esquina tem obrigatoriamente de ser meu. O que fiz foi contestar o uso do Da Esquina.

Mas essa é uma expressão popular.
Aliás, foi assim que começou. Em minha casa, alguém disse "achas que isso é a tasca da esquina ou quê?" e eu não sabia que nome havia de pôr aqui à Tasca da Esquina e ficou. E a partir daí evoluímos para tudo da esquina.

Voltando às suas receitas. Ainda se lembra das primeiras que criou?
O método sempre foi o mesmo, mas evoluiu. Já na escola de hotelaria tinha um caderno, onde escrevia tudo aquilo que ia aprendendo e que saía fora do que eu achava que era o padrão.

Ainda tem esses cadernos?
Alguns, sim. Mas, sabe, já sou cozinheiro há 33 anos. Tenho tudo informatizado, a única coisa que tenho a certeza de que não vou perder são as receitas. Tenho sempre um disco rígido com as receitas em meu poder. Porque já me aconteceu ter gente a trabalhar para mim que levou a minha base de dados. Criei uma forma muito própria de escrever a receita, que eu vejo logo se é a minha receita que está ou não.

Há uma exposição muito grande do que é o seu trabalho, dentro e fora de portas?
Sim, hoje estamos expostos a muita coisa, nós, cozinheiros. Há hoje coisas que nos acontecem que diria que são um bocado caricatas, como é que de repente um cozinheiro ganhou esse protagonismo todo da estrela de cinema quando nós não somos estrelas de cinema, somos cozinheiros.

O Vítor acompanhou esse processo todo, de mudança.
Sim, comecei-o, mas, sinceramente, o que sempre tentei fazer foi enaltecer aquilo que é a minha profissão, que é cozinheiro, porque chef... O que é ser chef? Eu sou cozinheiro porque ninguém se forma chef. Pode formar-se cozinheiro, mecânico, advogado. Agora pode ser chefe dos advogados, chefe dos mecânicos ou dos cozinheiros.

Mas, neste percurso em que os cozinheiros passam a ter uma presença tão grande no espaço público, quando é que sente que há essa mudança em Portugal?
Isso aconteceu de uma forma mais acentuada há 15 anos. E tem que ver com a forma como o mundo comunica. Acho que o mundo precisa de estrelas, de glamour. Como é evidente, isso tem coisas boas e tem coisas más. Não sei dizer hoje o que é melhor, se era naquela altura, se hoje. Porque acontecem situações que não são agradáveis. É muito mais importante um restaurante fazer dez anos ou 15 do que abrir, mas vocês, jornalistas, não ligam muito a isso, procuram é o novo. Como cozinheiro, fui obrigado a ser empresário, e esta coisa de ser empresário cozinheiro é muito desgastante. Nós, quando nos formamos, temos jeito para cozinhar e depois evoluímos tecnicamente. Ninguém tem formação de empresário, aprendemos um bocadinho na pele. Ainda no outro dia tinha o senhor que me fez as obras da Padaria a gritar comigo porque lhe devo 18 mil euros. Acho que tenho de lhe dever 18 mil euros porque paguei-lhe 300 mil e ele não deixou as coisas como deveria deixar. Estas coisas todas para o cozinheiro que deveria estar preocupado com outras coisas... E depois existe a exposição pública, e muitas vezes as pessoas não fazem ideia do que se passa. Hoje todos têm opinião, é um mundo de "tudólogos" e qualquer coisa que apareça na net tem opiniões quando não faz a menor ideia do que está por trás. O que acho é que se explora pouco a essência do que é o trabalho da pessoa, o que já fez, o que contribuiu para a classe... A forma de comunicar hoje a cozinha tem sempre que ver com a história do glamour e aquilo que choca, o que é uma notícia polémica.

A notícia faz parte da essência do jornalismo.
Não estou contra a polémica. Faço algumas afirmações polémicas, não tenho papas na língua, estou sempre a atacar o Guia Michelin, mas o que acho é que tem de haver respeito pela profissão. A nossa essência não é sermos polémicos.

O chef é polémico em relação ao Guia Michelin...
Sou polémico por uma razão: porque acho, e até posso afirmar que tenho a certeza, que os inspetores do Guia Michelin não têm condições de julgar os cozinheiros portugueses e a cozinha portuguesa porque eles não conhecem.

Porque não são portugueses?
E porque estão a julgar uma cozinha internacional. E, muito honestamente, acho que nós, portugueses, temos um papel muito importante na gastronomia mundial pelos produtos, pelas árvores que levámos e trouxemos, pela maneira que temos de cozinhar, e depois temos uma coisa fantástica, que acredito que deixe muita gente com inveja, que é a qualidade de produtos que temos neste país, que é fantástica. O nosso país não é vertical. É horizontal em camadinhas muito pequeninas, vamos do norte ao sul e do litoral ao interior, estamos a falar, sei lá, em 30 quilómetros tudo muda. É uma diversidade incrível.

E para se conhecer isso é preciso ter terreno, ter cultura?
É preciso estudar. Um cozinheiro pode ser uma pessoa evoluída, inclusive os cozinheiros portugueses, alguns da minha geração, e a maioria de uma nova geração, tecnicamente são muito evoluídos e arrisco dizer que somos um bocadinho mais cultos do que os outros. Porque nós conhecemos razoavelmente a nossa gastronomia, a nossa cultura gastronómica, e ainda conhecemos também a deles. E eles não conhecem a nossa. Um cozinheiro para atingir um patamar acima da média tem de estudar.

Fala-se muito da escola francesa...
Aí não tem jeito.

... mas pode um dia vir a haver uma escola portuguesa?
Não. Aí não tem jeito mesmo. Estamos a falar de técnica, não estamos a falar de gastronomia, é diferente. Os franceses desenvolveram uma técnica culinária evoluída, como os portugueses são calceteiros exímios. Ninguém consegue fazer calçadas como os portugueses. Até diria que talvez os padeiros e os pasteleiros tenham uma vantagem em relação a nós, porque a essência é mais nossa. O que quero dizer com isso? Se estivermos a falar de açúcar, um ponto de 99 graus é uma coisa, de 99,5 é outra, de cem é outra e fomos nós que fizemos isto. O pão, a maneira de misturarmos as farinhas, porque éramos muito pobres e havia muito pouco trigo, nós aprendemos a fazer pão de tudo e aprendemos a levedar pão com diferentes farinhas, e isso também é muito nosso. Nós vamos por essa Europa fora e ou é pão de centeio, ou de milho, ou de trigo. Vemos muito pouca mistura. Nós misturamos aquilo tudo. E aí há uma matriz. No que diz respeito à cozinha, talvez a única coisa que possamos pedir para nós são os fritos. Porque julgo que fomos os primeiros a fritar no mundo e, inclusive, levámos a fritura para o Oriente. Agora, a nível de cozinha, os franceses conseguiram, sobretudo através do [Auguste] Escoffier, criar uma base clássica francesa que serve todas as cozinhas do mundo.

E porque é que o mundo sabe o que é a tempura e não sabe o que são os peixinhos da horta? Porque somos muito pequeninos?
Pior! Nós somos o país que mais come arroz na Europa, o dobro dos espanhóis, por exemplo, mas, se perguntar a qualquer pessoa no mundo o que é um risoto ou uma palha, sabem... Aí a culpa é nossa. Nós não sabemos divulgar quem somos e o que somos e estivemos muito tempo enraizados, e ainda estamos muitas vezes, no somos os melhores do mundo mas só nós é que sabemos. Vou dar-lhe um exemplo. O nosso último projeto é da Padaria [da Esquina], e os nossos pães-de-leite são feitos com massa-mãe, a nossa bola-de-berlim é feita com massa-mãe, tudo é feito com produtos naturais, não entra nada na padaria que seja químico, e 99% hoje do pão e dos bolos que se vendem em Lisboa é tudo à base de químicos. Ora, o pão é água, farinha, uma levedura e sal. E ainda ontem estávamos a discutir isso. Há muito poucas pessoas que se interessem por isso e saibam que é assim. Portanto, estamos a ter uma dificuldade em comunicar o que é nosso.

E estamos a falar de uma coisa básica que é o pão
Exatamente.

Onde é que nos perdemos do pão, do bom pão?
Perdemo-nos muito por culpa das grande superfícies, porque elas foram abrindo e as pessoas foram olhando para o preço e foram-se esquecendo das coisas básicas. Quando vim trabalhar para Lisboa, havia umas 30 padarias. À noite, quando saíamos tarde, escolhíamos onde é que íamos cear. Havia até padarias que assavam uns lombos de porco para pôr no pão. Acabou tudo! O pão passou a ser pré-congelado, tudo industrializado, e depois andam muito preocupados porque há muitos cancros. Não comam nada que não saibam como é feito. Nada!

E atenção aos rótulos.
Leiam os rótulos. Hoje fala-se muito do sal e do açúcar. É assim, se hoje comer oito pastéis de nata, comi oito pastéis de nata, é uma opção minha. E eu posso comer menos ou não. Se beber um litro de refrigerante, estou a comer oito pastéis de nata no que diz respeito a açúcar. Esse é que é o problema. O problema não é o açúcar que nós sabemos que estamos a comer, é o açúcar que não sabemos que estamos a comer. E a mesma coisa acontece com o sal. Vejo uma grande preocupação, inclusive a nível governamental, vejo médicos a falar de sal, e não vejo ninguém a falar do que é importante falar. Se eu colocar um tubo de sal purificado, cem gramas, fico com o tubo de sal assim [a menos de metade, mostra por gestos]. Se eu colocar no mesmo tubo sal marinho tradicional, fico com o tubo de sal cheio. Portanto, cuidado com o sal, sim. Mas sobretudo cuidado com o sal que é tratado quimicamente. Mais: cuidado com tudo o que é tratado quimicamente. Ninguém sabe como é tratado, ninguém sabe as maleitas que aquilo pode trazer.

A sensação que dá é que nos afastámos do essencial, alterámos padrões alimentares, e agora voltar a isso, esse back to basics, tornou-se uma espécie de moda. Além de que é mais caro. Concorda?
Para já não é mais caro, é mentira. Se pensarmos que se nos alimentarmos bem temos mais saúde, logo aí baixa o custo. Depois um pão feito como deve ser dura mais tempo. Se guardar um croissant da Padaria da Esquina, garanto que ao fim de uma semana, se o aquecer no forno, ainda consegue comê-lo. E aquilo só tem produtos naturais. O caro e o barato são uma coisa relativa. Existem frangos hoje no mercado a três euros, oito euros e 25. E as pessoas não pensam porque é que há estas diferenças? Uma ave tem de comer dez quilos para engordar um quilo. Se essa ave não comeu esses dez quilos para engordar um quilo, como é que engordou? Agora anda aí uma campanha dos grandes supermercados que têm pão de massa-mãe. As pessoas não se perguntam? Pão de massa-mãe tem de ser feito de uma forma artesanal, não há hipótese, todo o processo é artesanal, não é industrializado. E as pessoas vão atrás. E depois as pessoas são preguiçosas. Não conseguem ir à procura... De um sítio que tenha ovos bons e comprar, um sítio que tenha pão bom e comprar, um sítio que tenha tomates bons e comprar. Não! São preguiçosas. E essa preguiça, no que diz respeito à saúde a médio/longo prazo, faz uma grande diferença. Não estou numa forma física fantástica, basta olhar para mim, e ainda por cima a cozinhar é horrível. Mas há muito pouco tempo fiz análises e sabe o que é que tenho? Peso a mais. Porquê? Não como nada ruim. E faz a diferença.

E sempre foi assim? Li que não comeu ovos de aviário até aos 14 anos.
Até aos 15 anos, é verdade. Mesmo que não tivesse vindo para cozinha, fui criado assim.

Acha que não perdia isso se não tivesse vindo para a cozinha?
A cozinha só aumentou o meu interesse. Mas nunca perderia por uma razão simples: na casa dos meus pais as coisas continuam a acontecer. Continua a haver galinhas, continua a haver ovos, a minha mãe continua a fazer pão, os porcos estão lá, continua tudo.

E já ensinou alguma coisa à sua mãe ou continua sempre a aprender com ela?
Como é evidente, ensino muita coisa à minha mãe, embora haja muitas coisas que só ela sabe fazer. Ela faz uns suspiros de pinhão... que não vale a pena tentar porque nada de semelhante se consegue fazer... A minha mãe é muito boa cozinheira. Mas, sim, sobretudo quando é altura das festas e há muita gente em casa, ralho muito com elas porque desarrumam muito as coisas, não têm o processo como acho que devem ter. Mas tanto a minha mãe como a minha avó e a minha tia foram excelentes cozinheiras, e acho que é uma mais-valia muito grande. O meu paladar foi educado de uma forma muito boa. Até o meu pai e o meu avô eram bons cozinheiros.

A sua mãe tem que idade?
Tem 75. E ainda tenho uma avó com 93 anos.

Lá está, alimentação, não é?
Sim. E mexerem-se.

Quais os seus pratos preferidos?
Tenho vários pratos de que gosto, talvez hoje coma mais peixe do que carne. É mais fácil no mercado encontramos peixe de qualidade. As pessoas não estão disponíveis para comer três vezes por semana arroz e massa e depois, quando comerem um bife ou um frango, comerem um bife ou um frango bom, e eu sou mais dessa turma. A carne tem de ser boa, porque comer carne por comer e engordada por processos pouco fiáveis não é para mim.

E o consumidor tem forma de saber que carne é essa?
O consumidor hoje tem forma de saber tudo. Tem é de se preocupar com o que come. Costumo dizer muitas vezes quando estou a dar aulas que os homens se preocupam muito com a gravata, com o fato, com a camisa, mas depois são capazes de comer uma coisa sem ler o rótulo. As senhoras com os batons, com os vernizes, com os cremes, e a mesma coisa. Temos de mudar as nossas prioridades: o que comemos, e sobretudo se temos filhos, tem de ser uma preocupação para nós.

E o Vítor tem filhos de idades muito diferentes [29, 14 e 3 anos] e sempre se preocupou com a alimentação deles?
Sempre. Nenhum deles come coisas ruins.

Mas, na abordagem que fez à alimentação deles, porque são muito diferentes as idades, o seu filho mais velho tem 29, mudou?
Vai fazer 30 neste mês. Não, a base é sempre a mesma. Sempre houve da minha parte a preocupação da sopa. E todos eles adoram sopa. Sobretudo quando são muito crianças, como é o caso do Manel, que tem 3 anos e pouco, aproveito sempre a sopa para passar todos os legumes que lhe quero dar. E foi sempre esse o princípio. O Tomás, que vai agora fazer 15 anos, com 7/8 anos, se lhe perguntasse se queria um bitoque ou um bife de atum com uma salada de tomate, ele dizia que preferia o bife de atum. Hoje as coisas mudaram porque há a fase da adolescência e na adolescência nós só temos de fazer uma supervisão ligeira, porque - agora vou dizer uma coisa polémica - a forma como são influenciados pelo seu meio, pelos colegas... Porque, quando existem famílias com algum poder aquisitivo, normalmente isso é sinónimo de que as crianças comem mal.

Porquê?
Quem tem menos recursos financeiros tem a preocupação de ir às compras e faz uma economia doméstica mais cuidada. Faz sopa, guisados, estufados, que são aproveitamentos. Ou melhor, a comida de tacho e a de tabuleiro dá mais aproveitamento. Quem tem mais dinheiro, mais facilmente vai ao McDonald's e come piza, fast food, que é caro. Aquilo que tenho observado quando vou às escolas é que, em função dos locais, as famílias com menos capacidades financeiras têm outra alimentação - quem me chamou a atenção para isso até foi uma das cozinheiras de uma cantina. Quem tem capacidade financeira acima do expectável deve preocupar-se, ir aos mercados, comprar as coisas melhores. Se não puder dar carne ou peixe muitas vezes, dá menos. Menos bife do lombo, mais carne para estufar.

E o que é uma supervisão leve?
Vou acompanhando aquilo que ele come. Se me pedir para ir ao McDonald's, não vou dizer que não. Vou com ele e trago o que ele quer. Não entro numa postura radical, fundamentalista.

E agora que vai de férias, esse cuidado mantém-se?
Sim, sou uma pessoa que gosta de cozinhar, cozinho nas férias. Uma coisa que me agrada é ir aos mercados, ir às compras e depois cozinhar para a família.

Consegue ir de férias ou tem sempre o radar ligado?
Há uns anos, tinha mais dificuldade. Agora tenho uma estrutura organizada de maneira diferente e consigo desligar minimamente.

Mas eu referia-me a descobrir novos sabores, ideias...
Isso é o meu estado natural. Estou sempre atento. Quem tem o gosto pela cozinha e pela profissão que tenho, isso vai acontecer até morrer. Estou sempre à procura de alguma coisa que de alguma maneira me surpreenda para depois poder aperfeiçoá-la à minha maneira e poder surpreender os outros.

Porque é que há tantos chefs homens?
Isso tem que ver com a questão de como a sociedade se organiza. As mulheres têm os sentidos muito mais apurados do que os homens, por serem mães. Se pegarmos num grupo indiferenciadamente de cem mulheres e cem homens, vamos encontrar melhores cozinheiras mulheres do que homens. Mas depois há todo o processo social que não facilita a vida das mulheres. Em minha casa, a Susana não tem de se preocupar com as compras, com a cozinha, agora eu não me preocupo se a roupa está lavada e passada ou não. Como é evidente, relativamente ao Manel, ajudo o mais possível, mas há coisas que ele quer que seja a mãe a fazer. Se tiver dar banho e deitar, eu faço, agora o Manel tem 3 anos e 2 meses, se fiz isso dez vezes foi muito. Como é que a Susana poderia ter a minha vida? Ela tem a parte profissional dela e é bastante ativa, mas acho que, nesse sentido, existem diferenças grandes na sociedade relativamente aos homens e às mulheres.

O que é que o Talho da Esquina vai ter da sua herança familiar?
Têm aberto alguns restaurantes de carne em Portugal. Descendo de uma família de agricultores, supostamente os meus avós eram ricos, coitados [risos]. Tinham dois montes, tinham rebanhos de ovelhas, de cabras, criavam bois, e depois havia sempre muitas coisas de capoeira e o meu avô era um caçador exímio. Até determinada altura da minha vida, não me lembro de ter comido um bife de bovino em casa dos meus avós, os bois eram para vender. Para terem dinheiro, tinham de vender os bois, a cortiça, a resina e os pinhões. Então a nossa tradição não é de carne bovina. Isto é, há alguma tradição das raças bovinas a norte do país e nos Açores. Agora nós inclusive nunca maturámos a carne. Os outros vinham aproveitar-se de nós, comprar as nossas raças, que são fantásticas, para maturar e iam para fora. Sobretudo os galegos e os bascos, que a vendiam a preços exorbitantes. Por isso, acho que um restaurante de carne tem de ter essa matriz portuguesa. Tem de ter enchidos, porco, frango, cabrito, e também tem de ter carne bovina, mas não acho que faça muito sentido um restaurante de carne que não tenha a matriz da cozinha portuguesa. E é isso que vou fazer. Vou fazer um restaurante em que a forma de comer a carne é como os portugueses comem, embora tenha carne bovina maturada, de proveniência nacional. As minhas carnes são de proveniência nacional. Se eu conseguir manter esta política, garantidamente que vou mantê-la. Descobri não há muito tempo que as nossas raças de trabalho e a nossa vaca frísia leiteira, depois de ser maturada, é uma carne fantástica para comer. Não pode ser morta e comida verde, mas maturada é fantástica. Na linha da minha filosofia de trabalho, tudo o que puder ter português vou ter português.

De há três anos para cá na ceia de Natal lá em casa come-se aquele bacalhau que vai ao forno a cozer em azeite, com as batatas e as cenouras...
Eu fico feliz, fico muito feliz.

Isto não era nada tradição lá em casa. Que responsabilidade é esta que tem de vir mudar as tradições das famílias?
Na verdade, a única coisa que mudei foi fazer que as pessoas não comam o bacalhau seco e mal cozido. Tudo o que cozinha no forno é fiável, porque se for 20 minutos a 150 graus é, se for uma hora é uma hora e no fogão não é. Mais, a maior parte das casas em Portugal têm gás e no gás não se consegue ver o um, o dois, o três, o dez. Por isso, tudo o que posso fazer para melhorar a forma de as pessoas cozinharem em casa, tento sempre pelo forno, porque é uma coisa que se consegue controlar com alguma facilidade.

Como é que se chama esta receita, para quem quiser experimentar?
Ui, há tantas! Mas a base é sempre a mesma, pôr as batatas primeiro a cozer, porque elas demoram mais tempo do que o bacalhau, e depois o bacalhau coze normalmente se o forno for fiável, a 150 graus 20 a 25 minutos. E, inclusivamente, faço uma coisa, que é pôr as cenouras, as batatas, o nabo, meto umas amendoazinhas e quase no fim meto o bacalhau. Com aquela água toda do bacalhau, das cenouras, fica fantástico. Qual é a vantagem deste prato? Fica tudo dentro do tabuleiro ou do tacho. Quando está a cozer na água, normalmente manda-se a água fora.

Mas é uma grande responsabilidade mudar assim as tradições.
Não, porque normalmente as tradições mudam de geração em geração. Aquilo que é regional é que nós não podemos mudar. Sempre tive esta leitura: Portugal tem a cozinha regional, a cozinha tradicional e uma outra coisa que é a cozinha lusófona, a influência em tudo o que são os países de língua portuguesa, e também aquilo que nós trouxemos. Está cá uma jornalista mexicana a conhecer o país e está fascinada. Quem chega aqui e tem uma cultura latina fica fascinado. Por isso é que não consigo aceitar muito bem que a Espanha tenha 350 Bib Gourmands [distinção do Guia Michelin que assinala restaurantes com boa relação qualidade-preço] e nós temos 30 ou 35. Como cozinheiro e como alguém que tecnicamente tem autoridade para falar sobre esse tema, não consigo perceber como é que Portugal, com esta riqueza gastronómica toda, não tem um Guia Michelin português, porque é que temos de estar acoplados ao guia espanhol. Não temos restaurantes? Não temos turistas?

Atualmente tem cá um chef espanhol com imensas estrelas [Martín Berasategui, dez estrelas em cinco restaurantes em Espanha], não é por acaso.
Esse aí vai ganhá-las todas.

E não acha que isso pode trazer outra visibilidade a Portugal?
Acha que nós que andamos cá somos burros? Porque é que ele chega cá e ganha e os que estão cá a fazer trabalho há algum tempo não ganham?

E está a trabalhar com produto português e com chefs portugueses.
Tenho a maior admiração pelo Martín Berasategui, mas se o Martín Berasategui ganhar três estrelas Michelin não entendo porque é que o Belcanto não possa ganhar três estrelas Michelin. Tenho de assumir que não existem muitos restaurantes para três estrelas Michelin em Portugal porque não existe público para eles. Mas, da maior parte dos restaurantes que são uma estrela Michelin, quase todos eles já mereciam duas estrelas. E se calhar o Zé Avilez, o Ricardo Costa - digo estes porque são aqueles de quem sou mais próximo, mas não quero ferir suscetibilidades -, se lhes dessem três estrelas não lhe ficava mal.

E já houve um chef [Henrique Leis, com uma estrela no restaurante homónimo em Almancil, Loulé] que quis deixar de ter estrelas.
Essa aí não vou comentar.

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