Vítor Melícias: limitar a nacionalidade a judeus sefarditas é "um incompreensível atentado"

Mais uma voz de peso se junta aos que contestam a proposta de lei do PS para alterar a lei da nacionalidade e obrigar os descendentes de judeus sefarditas expulsos pela inquisição a viverem dois anos em Portugal para obterem o passaporte português
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"Um incompreensível atentado contra a cultura de humanismo universalista, que nos tem distinguido na história da Humanidade", é como o padre Vítor Melícias classifica a iniciativa do grupo parlamentar do PS que prevê condicionar a concessão de nacionalidade aos descendentes de judeus sefarditas só para os que comprovem residirem um mínimo de dois anos em Portugal.

Numa carta aberta dirigida aos deputados da Assembleia da República, a que o DN teve acesso em primeira mão, o antigo provedor da Santa Casa da Misericórdia, que foi convidado de honra de António Guterres na tomada de posse como secretário-geral da ONU, considera esta proposta "um chocante retrocesso ao ato civilizacional, corajoso e universalmente admirado, que foi a reparação da injustiça histórica corrigida pela lei de 2013".

Nesse ano, recorde-se, foi aprovada no parlamento, por unanimidade, uma nova lei de nacionalidade, segundo a qual estes descendentes de judeus expulsos da península ibérica pela inquisição, podem obter a nacionalidade portuguesa, depois de provarem que os seus antepassados estiveram entre essas vítimas de um dos períodos mais tenebrosos da história nacional.

Conforme o DN noticiou, desde a sua entrada em vigor, em 2015, mais de 45 mil descendentes de judeus sefarditas e pediram a nacionalidade portuguesa ao abrigo do direito de retorno. Até novembro passado tinha sido concedida a nacionalidade a mais de nove mil, num processo de aprovação muito exigente que envolve a validação das descendências. Há uma equipa de historiadores a trabalhar com as comunidades judaicas em Portugal. São analisados e verificados árvores genealógicas, livros, documentos e ouvidas as histórias que foram passadas oralmente pelas famílias.

Surpresa e repúdio

A proposta do PS, de quem é porta-voz a deputada Constança Urbano de Sousa, ex-ministra da Administração Interna que se demitiu na sequência dos trágicos incêndios de 2017, pretende agora colocar um travão nesta legislação. No entanto, alguns históricos socialistas, entre os quais Maria de Belém Roseira, Manuel Alegre, Alberto Martins e José Vera Jardim, já vieram publicamente manifestar-se contra este plano.

"Há sete anos (o parlamento português) conseguiu, por unanimidade, reparar simbolicamente as atrocidades cometidas, no respeito pelo princípio do "jus sanguinis". Não pode, agora, quando recrudescem as intolerâncias religiosas, designadamente o antissemitismo, tratar os judeus sefarditas com frieza e visão administrativa como se estes não tivessem qualquer vínculo histórico a Portugal", assinalaram numa carta aberta divulgada esta semana.

Se for aprovada, estes descendentes passam a ter de comprovar "tradição de pertença a uma comunidade sefardita de origem portuguesa, com base em requisitos objetivos comprovados de ligação a Portugal, designadamente apelidos, idioma familiar, descendência direta ou colateral e que tenham residido legalmente em Portugal pelo período de dois anos" - segundo consta na versão preliminar do projeto defendido por Constança Urbano de Sousa.

"Não consigo calar a surpresa e repúdio pela iniciativa e pensamento subjacente à proposta, que agora surge na Assembleia da República contrariando aquilo que, por unanimidade, aprovou em recente e tão elogiada lei de 2013 sobre o reconhecimento de nacionalidade portuguesa aos descendentes de judeus sefarditas outrora expulsos de Portugal", sublinha na carta Vítor Melícias, que é membro Honorário da Fundação Internacional Raoul Wallenberg, inspirada em Sousa Mendes e no Padre Joaquim Carreira, os dois portugueses proclamados "Justos entre as Nações".

O padre franciscano apela aos deputados que "enquanto guardiães e bastiões dessa cultura, de que tanto nos orgulhamos, repensem, ponderem e, consequentemente, retirem ou corrijam tão desnecessária, inoportuna e anti-portuguesa iniciativa legislativa".

Assevera que "Portugal, tão justamente reconhecido como exemplar promotor de políticas de integração e acolhimento, não pode cometer este etnocídio de identidade e imagem". "Por favor", conclui, "por Portugal e pela Humanidade, repensem e procedam em conformidade".

A proposta de alteração à lei de nacionalidade prevê também que os filhos de imigrantes que vivam em Portugal há um ano poderão vir a ser portugueses,

Segundo Constança Urbano de Sousa afirmou à Lusa existe "um consenso" quer em relação à questão dos judeus, quer a esta dos imigrantes, obtido nas últimas semanas, mas que a votação na especialidade só se fará numa reunião da comissão de Assuntos Constitucionais, Direitos, Liberdades e Garantias, ainda sem data marcada, pelo que não é possível ter uma previsão de quando o processo legislativo estará concluído.

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