Vítima de violência doméstica deixou tudo para trás e recomeçou do zero em Pombal
Maria (nome fictício) foi vítima de violência doméstica psicológica e física durante vários anos. O amor que tinha ao companheiro e a crença de que ele mudaria manteve-a refém da relação, apesar das agressões se irem agravando, descreveu à Lusa.
"Os maus-tratos psicológicos já existiam. Os físicos começaram com uma bofetada. Depois passaram a duas e a violência foi crescendo. Numa aldeia pequena tenta-se esconder. A sociedade vai dizer: 'Coitada, que leva porrada, ou se leva é porque alguma coisa fez'", constatou.
O companheiro acusava-a de ter amantes. Maria "tentava desvalorizar". "Sabia que não tinha feito nada e acreditava que ele ia perceber isso. No início, fui tratada como um bibelô. Depois, batia-me, mas continuava a dar-me tudo o que havia de melhor. Era a maneira de demonstrar que nem tudo era mau. O agressor sabe como manipular e cativar as mulheres", denunciou.
Chegou a pedir à entidade patronal que lhe entregasse uma cópia do registo de entradas e saídas, para comprovar ao marido que passava o dia no trabalho e não tinha ninguém. "Não podia admitir algo que não tinha feito, mesmo que isso significasse levar mais pancada."
A sua vida passou a resumir-se a casa, trabalho e compras. "Isolei-me, para me proteger. Mesmo quando ia às compras nem levantava a cabeça do chão para ele não dizer que estava a fazer olhinhos a alguém", relatou.
Olhando para trás, a mulher de 40 anos considera que as agressões eram como um sentimento de posse: "Bato, porque és minha, eu posso."
Das chapadas, passou para os pontapés, murros, ameaças com navalhas e facas, agressões com comida quente e loiça.
Quando ameaçava que iria abandonar a casa, porque "não aguentava mais", o agressor usava o seu próprio filho (enteado da vítima) como argumento de que iria perdê-lo e dizia-lhe que iria ficar sozinha. "Sentia-me muito manipulada e com muito medo."
Uma noite, temeu pela vida. "Levei tanta pancada que já nem sentia o meu corpo. Ele transformou-se num animal. Não sabia se iria ficar viva."
Foi o limite para Maria. Pegou na mala, com roupa interior, e dirigiu-se à GNR. Nunca mais regressou. "Não quis ir para casa de amigos ou familiares, porque não os queria colocar em risco. Os agressores, como vamos vendo, vingam-se nas pessoas que nos ajudam."
Na polícia, foi encaminhada para um centro de acolhimento de emergência. Decidida a não voltar atrás, aceitou ser recolhida na Casa de Abrigo de Pombal. "Nós somos as vítimas, mas para nos protegermos temos de ficar isoladas. Tive pessoas que me ajudaram e apoiaram, impedindo-me de voltar para ele. Ou somos lutadoras, conseguimos ter força e deixamo-nos ser ajudadas ou se voltarmos arriscamos a ser mortas. Há dois anos que saí de casa e ninguém sabe onde estou."
O agressor não abdicou dela facilmente. Ligava-lhe com frequência a pedir para regressar e para esquecer tudo o que tinha acontecido, dizendo que estava arrependido. "Cheguei a ter esperança que mudasse realmente, mas quando era eu que lhe telefonava e ele não estava à espera recebia um balde de água fria. Estava alcoolizado e tratava-me mal ao telefone."
Maria admite que o amava profundamente e até foi incompreendida quando pediu ao tribunal para o não condenar. "É insólito dizer que se gosta de alguém que nos dá porrada."
Hoje, admite que sente "pena" e lamenta que o agressor nunca lhe tenha dirigido "um pedido de desculpas sentido".
Amigos, família e até os filhos ficaram na sua terra natal. A dor maior que sente é o afastamento dos filhos, que ficaram com o ex-marido. "Se calhar é ser egoísta, mas tenho de os proteger. Quero acreditar que quando forem maiores e tiverem a vida estabilizada que me vão compreender."
As feridas ainda não cicatrizaram. Muito de vez em quando faz visitas pontuais ao círculo mais próximo. Mas, regressar, "nunca mais".
Refez a vida aos 40 anos. Trabalha e vive sozinha. "Sempre fui trabalhadora. É uma honra ter trabalho, seja a fazer o que for. É duro recomeçar do zero com esta idade, mas sinto-me mais forte."
Às mulheres e homens que passam pelo mesmo, aconselha: "Não permitem que ninguém vos faça mal. Mesmo que tenham cometido algum erro, ninguém tem o direito de vos maltratar. Amem-se e amem a vida. Basta mesmo. Se há ameaças psicológicas, amanhã serão físicas e a tendência é para piorar um bocadinho. Esse bocadinho um dia pode ser o fim."
Entre 2001 e 2018, a Casa Abrigo de Pombal recebeu 1007 mães e filhos vítimas de violência doméstica, revelou à agência Lusa a diretora técnica desta resposta de emergência, Sandrina Mota.
A Casa de Abrigo de Pombal, que pertence à APEPI - Associação de Pais e Educadores para a Infância, inaugurou as mais recentes instalações em 2016. Uma casa construída de raiz para o efeito.
"Recebeu o nome de Teresa Morais, a secretária de Estado na altura que mais se empenhou para avançarmos com o projeto", justificou a presidente da APEPI, Teresa Silva. Tem a lotação de 16 utentes e está completa.
Sandrina Mota explicou que a Casa de Abrigo é o "último recurso" para onde vão as mulheres vítimas de violência doméstica para "salvaguardar a sua segurança e a dos filhos".
O objetivo é que seja "o mais longe possível do local onde as vítimas viviam, para evitar que possam ser localizadas pelo agressor".
A técnica referiu que não há um padrão típico das mulheres que chegam. "Algumas sofreram maus-tratos durante anos e é quando os filhos saem de casa que põem um ponto final na situação, outras não aguentam tanto tempo e noutros casos o medo de serem mortas fá-las abandonar a casa."
Também o estatuto social não interfere neste drama. À Casa de Abrigo chegam mulheres financeiramente autónomas, outras que nunca trabalharam, com a escolaridade obrigatória ou com menos estudos.
"O que se verifica é que quem já trabalhou e tem mais qualificações, tem maior facilidade em encontrar o seu projeto de vida e recomeçar mais rapidamente", informou Sandrina Mota.
Nos últimos anos, a instituição de Pombal tem acolhido mulheres na faixa etária dos 45 aos 50 anos, mas há também entradas de vítimas mais velhas. "Hoje há também mais visibilidade destes casos e as mulheres não têm tanta vergonha em recorrer a ajuda. As próprias famílias e as pessoas que estão mais próximas estão mais sensibilizadas para a violência doméstica e tentam ajudar."
Segundo Sandrina Mota, as vítimas chegam numa situação "emocional muito fragilizada e com muito sofrimento". "Além da violência que passaram, deixaram tudo para trás: amigos, família, a relação que tinham, emprego. É um duplo sofrimento. Infelizmente, é a vítima que tem de abandonar a casa e tudo isso é um turbilhão de emoções."
Viver numa casa de abrigo "não é fácil". É preciso "partilhar um espaço com quem não se conhece e existem regras". Por isso, nem todas suportam todo este processo.
"Há vítimas que regressam a casa, mesmo quando é desaconselhado. Mas a presença é voluntária. Não obrigamos ninguém", salientou Sandrina Mota, ao recordar o caso de uma mulher que insistiu em sair. "Na sexta-feira foi embora e na segunda-feira foi morta a tiro pelo companheiro."
A permanência neste espaço é temporária. O objetivo é que não ultrapasse os seis meses. Durante este período, as vítimas são acompanhadas por técnicas e especialistas, que as ajudam a encontrar o seu caminho.
"Estamos a lidar com pessoas e há quem demore mais tempo a alterar comportamentos. Investimos muito no empoderamento e no reforço de competências das mulheres. Há utentes que se conseguem organizar em dois meses, outras que levam um ano. Quando uma mulher se começa a valorizar, o simples ato de querer arranjar as unhas, para nós já é uma vitória", insistiu a técnica.
A autoestima é fundamental: "Há mulheres que regressam a casa e assumem que foram elas que mudaram e que passaram a mandar. Quando isso é alcançado, é muito gratificante para nós."
A dependência emocional, disse Sandrina Mota, é um dos principais problemas destas vítimas. "Quanto mais tempo estão sob os maus-tratos, mais dependência existe. Os agressores são manipuladores e sedutores e prometem que vão mudar e muitas aceitam tentar de novo, mas depois percebem que o agressor não muda", denunciou.
Culpa, vergonha e pensar que o erro foi seu é também apontado pela coordenadora da Casa de Abrigo como sentimentos que dominam a vítima.
Teresa Silva alerta que a "violência psicológica é muito grave e altamente dolorosa". "Temos vítimas cujos agressores nunca lhes tocaram. As mulheres têm de se convencer de que ser controlada é sofrer violência. Não poder ir ao cinema com as amigas, entregar o dinheiro que ganha ao marido, ser impedida de ascender na carreira ou ser humilhada é violência. As piores marcas e as mais difíceis de apagar são as que não se veem."
Criticou a demora na justiça, sobretudo, na aplicação das medidas de coação ao agressor. "A colocação da vigilância eletrónica não é imediata e também não é garantia de uma agressão à distância."
Compreendendo que não "seria possível ter as forças de segurança ao lado de todas as vítimas", Teresa Silva defendeu uma maior aposta na prevenção ao nível do pré-escolar.
"A violência no namoro existe. É preciso começar a trabalhar as crianças desde pequenas para a igualdade de género, em paralelo com a violência doméstica. As duas andam, muitas vezes, juntas. Não é aceitável que o namorado (a) queira controlar o telemóvel ou o que veste", alertou a presidente da APEPI, frisando que as vítimas "desvalorizam, pensando que é um ato de amor".
"Tudo isto tem de ser desmistificado. Há muito trabalho a fazer. A APEPI aproveita todas as efemérides para realizar ações junto das escolas. Mudar comportamentos demora tempo, mas há que investir muito na prevenção."