Vingança ou perdão? Juízes levam Mandela a jovens condenados
"Quando somos vítimas de injustiças, ficamos zangados - é natural", está escrito na contracapa do livro "A Admirável Aventura de Mandela, contada aos mais jovens" oferecido aos 19 jovens internados no Centro Educativo Padre António Oliveira - uma iniciativa da Associação Sindical dos Juízes Portugueses (ASJP), a assinar o Dia Internacional de Nelson Mandela, celebrado a 18 de julho.
"Mas é preciso alguém mesmo extraordinário para fazer da zanga de um país uma enorme maré de boa vontade, e transformar um país muito zangado numa nação em que todos trabalham para a paz e o bem de todos", conclui o texto.
Os jovens 1, 2, 3, 4... (estão assim identificados nos cacifos da entrada) daquela unidade de reabilitação, onde se procura desviá-los do caminho da delinquência onde caíram, sorriram um pouco quando olharam para os desenhos meio infantis da obra escrita por Maria Inês Almeida. "Aonde é que vamos vender isso, meu?", segredava um deles, riso largo e traquina, no ouvido de outro.
Estavam, no entanto, bem atentos, nas suas cadeiras em fila, quando Manuel Ramos Soares, o magistrado que preside à ASJP, lhe falou no legado de Mandela. "Às vezes a vida apresenta-nos duas estradas, como uma encruzilhada, uma mais fácil, outra mais difícil. Quando saiu da prisão, onde esteve 27 anos, Mandela teve de escolher entre a vingança que muitos dos seus próximos pediam, e o perdão, muito mais difícil. E escolheu perdoar e construir um país sem guerra e sem vítimas que era o que a vingança iria proporcionar", sublinhou.
A história do líder histórico sul-africano e prémio Nobel da Paz, o "mandiba" Nelson Mandela, não era estranha aqueles jovens, que têm entre 14 e 19 anos. "Também já vimos o Invictus", lembra um deles, dos mais novos, cara lisa imberbe, quando a responsável pelo Centro explica aos presentes, entre jornalistas e os magistrados da ASJP que em maio tiveram um encontro com um escritor, que conheceu Mandela e partilhou com eles a sua experiência.
Falar de vingança ou perdão a estes jovens, retidos porque cometeram crimes, foi um desafio e um risco assumido por Manuel Soares e por Cristina Mira, juíza da direção nacional do sindicato. "Mandela conseguiu fazer uma coisa difícil e talvez um dia vocês também o consigam", afirmou, perscrutando os olhares vivos da audiência.
Veio a única intervenção, meio atrapalhada e atrevida de um dos jovens: "Ouvi que ele (Mandela) era o comandante daquela cena e queria abater os outros gajos. Foi preso porque andava à porrada!", dispara.
Manuel Soares percebe a provocação e, tranquilamente, retorque: "Sim, é verdade. Ele era o líder do ANC (Congresso Nacional Africano), um partido político que lutava contra a segregação racial. A certa altura, quando viram que apenas pela via política não estavam a conseguir nada, começaram a usar a violência. Às vezes a violência é necessária. A história tem-nos ensinado isso", assevera o magistrado.
"Não estou a dizer que ele agiu mal", sublinha o jovem. "Todos passamos pelo nosso caminho das pedras, como vocês neste momento...", continua Soares. "Nós é mais calhaus", atira o miúdo, arrancando gargalhadas dos outros.
Não houve, infelizmente, tempo para conversar com calma e debater o exemplo de Nelson Mandela, ou como estes jovens se sentiriam no seu papel, ou mesmo que escolhas querem fazer quando saírem do Centro Educativo.
Não houve mais perguntas, nem os magistrados puxaram por elas. Não foi também permitido falar com os jovens. Manuel Ramos Soares admitiu, já no exterior, que podiam ter comunicado mais, mas esta foi a primeira iniciativa do sindicato num Centro Educativo e serve de lição para as próximas.
O Centro Educativo Padre António Oliveira é uma das oito instalações da Direção-Geral de Reinserção e Serviços Prisionais, para internamento de jovens delinquentes. Tem uma lotação para 24 rapazes e neste momento estão internados 19 (metade em regime aberto).
De acordo com o último relatório do ministério da Justiça, em final de junho estavam internados um total de 91 jovens em todo o país - o número mais baixo de sempre (chegaram a estar 260 em 2012) - o que representa uma diminuição de 18,6% em relação a igual período de 2018.
Os mais novos têm 13 anos (três casos) e o mais velho 20. Destacam-se os jovens de 16 e 17 anos, que representam 63% do total. Mais de metade (61%) são da zona da Grande Lisboa.
A esmagadora maioria (90%) são portugueses, existindo 10% de estrangeiros (brasileiros, cabo-verdianos, guineenses e romenos).
A prática de crimes contra a pessoas, designadamente ameaças, coação e ofensas à integridade física predominam no histórico destes jovens. Roubos e furtos seguem-se. Há também quem tenha violado, abusado de crianças, raptado, traficado droga e burlado. Há dois internados por homicídio.