Hugo Branco carrega no sobrenome uma herança valiosa no universo cultural do país. É na casa onde cresceu, com os avós (atualmente transformada em guesthouse e residência artística) que de certa maneira continua o percurso alternativo e multifacetado do avô, um farmacêutico que ficou conhecido em Portugal e no mundo nos domínios do cinema, da cerâmica, da pintura e da literatura. Toda a casa mantém vivo esse espólio, no centro da cidade de Aveiro..E foi ali que acabou de nascer, em pleno confinamento, a editora VIC-NIC. "É um dispositivo circulatório de obras sonoras, visuais e escritas, que arranca hoje, com o objetivo de estimular a partilha, a experimentação e a cocriação, através da articulação entre a pesquisa, a produção e a difusão de formas únicas de ver o mundo.".Hugo, também ele dedicado à música (eletrónica), à produção e difusão de espetáculos e eventos culturais, diz ao DN ao que vem o novo projeto: "Interessam-nos especialmente os cruzamentos entre a arte/exploração sonora e outros estilos musicais mais familiares." E afinal, as edições programadas resultam frequentemente da atividade desenvolvida no âmbito do projeto VIC // Aveiro Arts House, que desde 2016 tem vindo a programar pequenos festivais underground, mas também eventos institucionais de maior escala, bem como iniciativas de conservação do património cultural, ou ainda a participar em redes de cooperação internacional e a desenvolver projetos comunitários de arte participativa. Na memória de todos ficou a primeira das noites de literatura, então inauguradas por Valter Hugo Mãe..A equipa que dá corpo à nova editora "inclui pessoas de várias áreas e países", explica Hugo Branco. Desde o técnico de som português Lucas Palmeira, à designer brasileira Nayara Siler e o ilustrador espanhol Lägrima. "No futuro próximo iremos trabalhar com artistas mais estabelecidos e outros mais emergentes, ao nível nacional e internacional", acrescenta o mentor desta ideia, enquanto faz uma visita guiada à casa, à distância de um Zoom. Dessa lista já disponível farão parte Santi Lesca (AR), Skier and Yeti (RS), Troll's Toy (PT), Boris Chimp 504 (PT), Azia (PT), Piurso (PT), Probióticos (PT), Jenny & her Epileptic Dog (EUA-PT) e Martin Minervini (AR)..Hugo Branco sublinha ao DN que a editora "era um projeto já há muito na gaveta, que agora conseguiu ver a luz do dia". Afinal, é como se fosse o fechar de um ciclo de criação na Casa, desde a investigação à criação de projetos e respetiva concretização. "No fundo faltava-nos um mecanismo de transmissão" que mostrasse o resultado desses processos, nascidos naquele edifício "que é quase um ecossistema. Há uma interação entre hóspedes, artistas locais, público de Aveiro e de outras geografias. E isso há muito tempo que criava conteúdos muito ricos", que Hugo foi promovendo através da Navalha - associação cultural..Dentro da VIC // Aveiro Arts House, o confinamento foi tudo menos aborrecido. Além de continuar com alguns hóspedes-amigos-artistas, o espaço acabou por funcionar como uma bolha de criação. De resto, já há um ano a casa tinha experimentado um confinamento "coletivo", com alguns artistas e hóspedes que optaram por fazer ali a quarentena. "Neste momento o andar da residência artística está todo alugado para estadias longas", conta Hugo Branco. "São pessoas conhecidas, porque não queríamos comprometer o ambiente do edifício, a segurança. Agora são quatro pessoas, noutros tantos quartos. Já no primeiro andar fizeram algumas residências pontuais, como a de Gil Dionísio e Beatriz Nande", que ali terminaram de gravar o álbum Sons de Embalar para Tempos de Guerra, que saiu já neste ano..A casa de Vasco Branco foi desenhada nos anos de 1950 por Vítor Palla, o arquiteto e ilustrador amigo do avô de Hugo. "Ele era muito bom em design de interiores, por isso é que a casa tem um interior muito interessante", explica o mais orgulhoso dos netos, a partir de um auditório repleto de memórias e arquivos, construído em 1969. "Foi uma prenda da minha avó para o meu avô, pelos seus 50 anos", recorda. Depois há a biblioteca, com um acervo impressionante..Vasco Branco (1919-2014) e a mulher mudaram-se no princípio da década de 60 para a casa de Aveiro. O auditório funcionava como cinema clandestino, ao tempo que o avô era um dos fundadores do cineclube de Aveiro. Farmacêutico de formação, Vasco Branco dedicava-se à cerâmica, ao cinema, à pintura e à literatura. "Tem 15 livros publicados, umas 40 curtas-metragens. Foi premiado em Cannes e convidado para júri do festival. Ganhou prémios em 21 países nos cinco continentes", recorda Hugo Branco, filho da poeta Rosa Alice Branco.."Este auditório acabou por se transformar no quartel-general da oposição cultural ao regime naquele tempo", explica, ele que de certa maneira conseguiu dar continuidade a esse desígnio de refúgio cultural da Casa. "De certa maneira a utilização continua a ser um pouco essa. A programação é bastante experimental", numa cidade que nos últimos anos cresceu muito no campo cultural, com vários coletivos, com a reabilitação do Teatro Aveirense, a criação de novos festivais, "de uma relação mais direta com os agentes culturais e com os artistas, além de uma série de iniciativas privadas muitas vezes com poucas condições e por teimosia", conclui Hugo. De resto, Aveiro é uma das nove cidades portuguesas a disputar o título de Capital Europeia da Cultura, em 2027..A casa do cineasta foi ocupada (de novo) pela cultura em 2016. "Foi uma oportunidade que surgiu de um problema", costuma dizer Hugo Branco, quando recua ao momento em que a família equacionou vender a casa para custear as despesas inerentes à saúde e bem-estar da avó (o avô faleceu em 2014). Os três filhos de Vasco Branco acabaram por se ligar às artes, cada um à sua maneira. E Hugo também. Já viveu pelo mundo, e ao fim de uma temporada no México, quando já tinha sido fundador da Viral Agenda, em Portugal, voltou para ajudar a instalar a aplicação móvel. Foi quando se apercebeu que a casa estava à venda. E travou o destino. "Esta é a casa que eu sempre reconheci como minha, porque cresci aqui, mas por outro lado tem uma dimensão de património cultural. Porque foi ponto de encontro para algumas das principais figuras da cultura e da política portuguesa." Toda a casa respira arte e memórias desses tempos antigos..Até pela experiência que trouxera do México, Hugo imaginou transpô-la para a casa de Aveiro, através de residências artísticas. Fez uma proposta à família. "Pedi-lhes que me dessem um ano para pôr o projeto a funcionar." Correu bem, afinal. A primeira coisa foi reabilitar o andar onde viria a funcionar a guesthouse. E o resultado final permitiu a quem a escolhe para ficar "entrar numa máquina do tempo", já que até o mobiliário é o original, devidamente recuperado. No universo das avaliações dos hóspedes, a média é de 4.9 em 5, o que diz bem de como o sonho de Hugo se tornou realidade, com sucesso. Liliana, que começou por trabalhar como administrativa e atualmente também se dedica a produção cultural dentro de portas, faz sempre uma visita guiada não só aos hóspedes como "a qualquer pessoa que queira visitar a casa, contando-lhes a história"..Apanhados pela pandemia, os sucessores de Vasco Branco fizeram o que talvez o artista tivesse feito: contornar a realidade. E só neste ano, a casa já recebeu duas residências artísticas. O capítulo que se segue começa a ser contado esta sexta-feira com um primeiro trabalho, que pode ser descarregado gratuitamente em www.aveiroartshouse.com/lifeisavicnic/.Segue-se um livro, já impresso, embora ainda sem data marcada para lançamento: Manual de Boas práticas para a Realização de Projetos Culturais Comunitários em Meio Rural. Porque o mundo cabe todo dentro de uma casa, em Aveiro..dnot@dn.pt