Viagem interminável para atravessar o país em transportes públicos

Seis horas serão demasiado para atravessar o país a meio via transportes públicos? Barreiro e Portalegre distam 240 quilómetros. Em viatura particular levariam, em média, 2h40 a ser percorridos. Mas, no serviço público, é necessário enfrentar vários contratempos.
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Pelas 5h40 há quem desespere na estação ferroviária Barreiro-A. O primeiro comboio urbano da manhã está atrasado dez minutos. Centenas de passageiros esperaram ao longo da Linha do Sado, em estações vandalizadas, sem proteção contra o frio e chuva, máquinas de bilhética e elevadores avariados. É o início de uma viagem entre Barreiro e Portalegre. Cerca de 240 quilómetros durante os quais "atravessar o pais em transportes públicos pode revelar-se interminável, sem acessibilidades, conforto ou garantias de higiene", afirma Marco Sargente, membro do Movimento de Utentes de Serviços Públicos (MUSP).

Num contexto marcado por paralisações no Metro de Lisboa, Transtejo-Soflusa e rodoviárias privadas e uma greve geral da função pública que afetou a circulação da Comboios de Portugal, há maquinistas, motoristas, fiscais e comissões de utentes a reivindicar mais qualidade e segurança nos serviços. E Carlos Humberto de Carvalho, primeiro-secretário da Área Metropolitana de Lisboa e um dos grandes impulsionadores do passe social Navegante, alerta para problemas graves que se arrastam, pelo menos, desde 2016.

Contactada pelo DN, Ana Paula Vitorino, presidente da Autoridade de Mobilidade e dos Transportes não comenta a situação atual.
Entretanto, quem empreende numa viagem com início no Barreiro e destino em Portalegre depara-se com problemas desde os primeiros minutos. Na estação Barreiro-A a máquina para recarregar o Cartão Viva Viagem está bloqueada. Mesmo que estivesse a funcionar, não tinha troco e a opção multibanco estaria fora de serviço.

Atravessar a passagem aérea para o sentido Terminal Fluvial do Barreiro também se revela um desafio. "O elevador demora tanto tempo que muitas pessoas desistem e atravessam a linha a pé, para não subirem as escadas", descreve Teresa Lopes, uma das passageiras habituais das 5h30.

DestaquedestaqueNa estação Barreiro-A a máquina para recarregar o Cartão Viva Viagem está bloqueada. Mesmo que estivesse a funcionar, não tinha troco e a opção multibanco estaria fora de serviço

Em 2019 a travessia da linha a pé causou duas mortes no Barreiro. Mas subir as escadas sem resguardo da chuva, e sem vidros no corredor superior que liga os dois lados da linha, não é opção para a maioria dos utentes.

Os vidros desapareceram há vários anos, assim como partes do corrimão. A Infraestruturas de Portugal garantiu "recolocar tudo e reforçar a segurança, mas até hoje o que ali está é uma vedação de arame que não impede uma queda acidental de seis metros de altura", aponta Teresa Lopes, enquanto espera pelo comboio atrasado.

Dentro do comboio, o fiscal alerta os passageiros sem bilhete que têm que pagar multa. A justificação da máquina avariada não é aceite. As ordens da administração da Comboios de Portugal são para "aplicar coima em caso de ausência de título de transporte, seja qual for o motivo", diz o fiscal.
No último ano, a empresa responsável pelas máquinas de bilhética começou a falhar na manutenção e para a Comboios de Portugal "não é aceitável, nem possível, suportar todos os passageiros sem título de transporte por culpa de terceiros".

Na chegada ao Terminal Fluvial do Barreiro, onde os catamarãs partem com destino ao Terreiro do Paço, o início do novo dia contrasta com despojos de horas passadas. As papeleiras estão cheias de lixo, o chão sujo. A bordo do catamarã, o cenário também deixa dúvidas nos passageiros sobre a regularidade da higiene e desinfecção. "As paredes têm bolor, o chão um tom acastanhado apesar da cor original ser azul", aponta Joaquim Guedes, utente do serviço há mais de 20 anos. Para piorar, "desde que pandemia começou desativaram as casas-de-banho a bordo, então se alguém tiver uma indisposição tudo pode acontecer".

Em 2020, a administração da Transtejo-Soflusa anunciou que parte destes problemas ficariam resolvidos com a contratação de pessoal e a aquisição de uma nova frota. Mais de um ano passou, chegaram novos marinheiros e foi contratada uma empresa de limpeza, mas "a bordo pouco mudou, muito piorou". Em relação à nova frota, estão a ser construídos dez navios de propulsão eléctrica nos Astilleros Gondán, em Espanha. O primeiro deve chegar a Portugal em abril de 2022. A restante frota ficará completa até 2024. A Comissão de Utentes de Transportes da Margem Sul (CUTS) dúvida que seja suficiente para colmatar todas as falhas.

Em comunicado, a Transtejo-Soflusa referiu que os novos navios "serão especificamente concebidos para as necessidades de operação da Transtejo". O que significa que vão circular entre Seixal, Montijo, Cacilhas e Cais do Sodré substituindo os velhos e degradados Cacilheiros da década 1970, mas continuando a deixar sem soluções o Barreiro, onde o aumento de passageiros foi de 20%, desde a entrada em vigor do passe social Navegante. "Frutos de uma gestão pouco planeada, desde a aquisição dos navios elétricos, à construção das estações de carregamento", aponta a CUTS.

As estações apenas estarão concluídas em 2024, pelo que, "com este plano os navios entregues em 2022 e 2023 ficam parados, pelo menos um ano".

A viagem prossegue. Na chegada ao Terreiro do Paço falta pouco para as portas do Metro abrirem, pelas 6h30, mas as escadas rolantes estão desligadas. O elevador fica "fora de mão, do outro lado do terminal Sul e Sueste", aponta Alexandra Sousa, passageira frequente que todos os dias espera pelo primeiro comboio.

Quando o acesso ao Metro abre, passageiros apressados descem malas de viagem pela escadaria de mármore e uma mãe com o filho no carrinho procura alternativas. Vale a solidária ajuda de um companheiro viagem. Depois desta maratona, nas carruagens os bancos sujos "deixam pouca vontade para sentar, isto quando há lugares, porque nas horas de ponta o tão falado distanciamento social nunca é possível cumprir", afirma Cecília Sales, membro da Comissão de Utentes dos Transportes de Lisboa.

Esta é das razões pelas quais as bandeiras de passageiros e trabalhadores "se foram unindo", diz Carlos Macedo, dirigente do Sindicato dos Trabalhadores do Metropolitano de Lisboa. As paralisações realizadas a 26 de outubro e 4 de novembro foram mobilizadas "por mais e melhores condições de trabalho e qualidade do serviço prestado, com uma adesão perto dos 100%".

O maquinista com 30 anos de carreira ao serviço do Metro de Lisboa explica ao DN que, "mesmo com direitos mínimos garantidos, os trabalhadores pretendem continuar a lutar contra os desinvestimentos da administração da empresa, por exemplo, na contratação de fiscais". No lugar desses profissionais, são subcontratados serviços de segurança que não acompanham todo o horário de funcionamento do Metro, "deixando os passageiros desprotegidos".

DestaquedestaqueA estação Baixa-Chiado tem constantemente escadas rolantes desligadas e elevadores avariados. A desinfeção "foi forte no início da pandemia, mas agora desapareceu".

Nestas questões, Cecília Sales acusa a administração do Metro de Lisboa de "má recetividade". Durante uma reunião, questionou o administrador: "o senhor anda de Metro? Se não anda devia, para conhecer as condições". Mas, "a sugestão foi recusada". E num ano e meio de pandemia, "o que estava mal piorou".

A estação Baixa-Chiado tem constantemente escadas rolantes desligadas e elevadores avariados. A desinfeção "foi forte no início da pandemia, mas agora desapareceu". E para quem tem problemas de visão, como Cecília Sales, "há poucas soluções, além da diferença de textura no pavimento das plataformas, para assinalar a proximidade da berma". E durante a noite é "tenebroso" viajar sem vigilância.

Na lista de problemas "com solução duvidosa" está ainda Arroios. Entrou em obras em 2017, teve uma paragem de trabalhos durante a pandemia e ficou terminada em setembro deste ano. "Entretanto, já está a meter água".
Cecília Sales está certa de que "a obra parou devido à falência do empresário". O mesmo que realizou as obras na estação do Areeiro. Alegadamente, "tem o modus operandi de abrir uma empresa, declarar falência e abrir outra, para ir recebendo as obras", comenta.

Ainda no Metro, a Linha Circular é o assunto da ordem do dia. Apontada por Carlos Moedas, presidente da Câmara Municipal de Lisboa, como "um erro, longe de ser a melhor opção para servir a população". A 17 de novembro a intenção do autarca ganhou mais força depois da câmara aprovar uma moção do PCP de oposição à Linha Circular do Metro de Lisboa, desafiando o Governo a reavaliar o projecto.

No seu programa eleitoral Carlos Moedas já havia assumido que, se vencesse as Autárquicas, uniria a Linha Circular do Metro e a Linha Amarela num único percurso, "em laço". O objectivo é aproximar Odivelas, Campo Grande, Rato, Cais do Sodré, Alameda e Telheiras, eliminando transbordos que considera desnecessários.

Durante a Portugal Smart Cities Summit, que decorreu nos dias 17 e 18 de novembro na Feira Internacional de Lisboa, Paulo Ribeiro, investigador da Universidade do Minho na área da mobilidade, sublinhou que "as pessoas continuam a dar preferência ao automóvel porque não existe um sistema de transporte público atrativo", e por isso o automóvel particular representa 60% do trânsito e o transporte público apenas 11%. No total são mais de 600 mil os veículos a circular diariamente na capital.

O caminho para Portalegre continua. Ainda é preciso chegar à Estação Rodoviária de Sete Rios para apanhar o autocarro da Rede Expresso, com partida marcada para as 7h30. A chegada à cidade mais a norte do Alentejo está prevista para as 11h15.

Desde as 5h30 a pé, seis horas serão demasiado para atravessar o país a meio via transportes públicos? São cerca de 240 quilómetros que levariam, em média, 2h40 a 3h00 a ser percorridos em viatura particular. Mas, no serviço público, depois da atravessar o Tejo e entrar no Metro, ainda é necessário enfrentar um rol de escadas rolantes desligadas e sinalética confusa para descobrir a entrada do Terminal Rodoviário, lugar descrito por passageiros como "de terceiro mundo", "sujo", "sem ventilação". E só então entrar no Expresso.

Em Portalegre, começa um novo plano de viagem, que evidencia que a coordenação entre operadores de transporte público é quase nula. Fora da cidade há vilas e aldeias onde passa um autocarro uma vez por dia. Para alcançar Gavião um único autocarro parte da Rodoviária do Alentejo pelas 18h15, obrigando passageiros a vaguear por Portalegre um dia inteiro. Há comboios, mas a 12 quilómetros da cidade. E ainda que fosse a alternativa escolhida, o percurso da automotora termina em Abrantes, onde é necessário trocar de comboio, para chegar até à vila de Belver. Depois disso, há ainda que percorrer seis quilómetros até Gavião. Serviços de táxi tornam-se então alternativa frequente entre Portalegre e vilas próximas, com valores que podem ultrapassar os 50 euros.

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