"Ver vacas a pastar não faz de uma pessoa um escritor"

Luísa Costa Gomes ainda vive perto de Lisboa; Afonso Cruz mais distante, tal como Miguel-Manso. Joel Neto vive no meio do oceano. O que muda na escrita de quem abandona a cidade é a grande questão
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Eça de Queirós abominava a "choldra" nacional e se o quisessem ver feliz era dar-lhe um cargo no estrangeiro. Jorge de Sena passou a vida fora de Portugal por imposição do regime e só regressou bem depois da morte. Alexandre Herculano fez o último exílio no Ribatejo, onde se dedicou à agricultura, mais empenhado em prestigiar o Azeite Herculano do que na obra. E hoje?

Por uma ou outra razão, viver no campo ou fora dos grandes centros ainda é moda entre os escritores portugueses que viram costas à cidade grande. Porquê... Será que há uma razão que justifique a escapada campestre? Foi o que se procurou apurar junto de quatro autores que representam a ficção, a dramaturgia e a poesia.

Luísa Costa Gomes

A escritora Luísa Costa Gomes está muito perto de Lisboa e se não houver trânsito bastam-lhe dez minutos para se enfiar nos engarrafamentos da capital. Tão perto que da sua margem do rio Tejo se vê Belém no seu esplendor. Primeiro justifica a fuga de Lisboa de há algumas décadas por questões práticas de casamento, mas logo enuncia benefícios da paz do local onde vive na Costa de Caparica. Que lhe dá concentração e disponibilidade para estar a escrever vários livros em registos diferentes: "Tudo é trabalho e se tenho um problema técnico e mais fácil ir trabalhá-lo nos 30 quilómetros de praia a cinco minutos de casa, onde posso andar a falar sozinha e resolver o problema."

Estar ali não é isolar-se, pois a cidade faz-se sentir, como explica a autora: "É uma paz falsa porque estou na rota do aeroporto e, contra a lei em vigor, os aviões não param a noite toda." Já não repara e se não fossem as visitas a fazê-la notar ignorava a situação. Quanto à influência dos arredores na obra, disso não duvida: "Toda a configuração da vida acaba por influir na escrita. Aqui a vida torna-se muito mais sossegada mas é difícil aos que saem dos grandes centros adaptarem-se novamente ao ritmo da cidade. Posso ser eu a fantasiar, mas não tenho qualquer curiosidade pela cidade, antes por ilhas: os Açores ou as Caraíbas, para onde vou brevemente. Interessam-me mais os sítios do que os locais onde existe muita gente a fazer coisas interessantes, mundanas e modernas, que nada me dizem."

O registo literário não muda devido à envolvência: "Não influi na matéria que estou a tratar, mesmo que esteja consciente de que tenho muita dificuldade em escrever sobre temas urbanos." Os seus livros, recorda, não têm gente a viver em Lisboa, a não ser em textos curtos que respondem a esse pedido, prefere locais utópicos: "Uma grande quinta ou ao pé de uma praia, onde não existe uma intimidade forçada. Lisboa é um sítio que me rejeita e com a industrialização do turismo de massa, os tuk-tuks, ainda pior. Se vivesse na cidade não escrevia tanto, porque aqui entro numa rotina de trabalho - leitura, escrita, tradução. Não estou a idealizar a aldeia, porque esta pode ser um pequeno inferno e onde o que se vive determina a disposição ao sair de casa."

Pondera voltar à cidade? "Não sei o que vai acontecer", responde.

O Alentejo de Afonso Cruz

O escritor Afonso Cruz decidiu ir com a família viver para o Alentejo, mas é radical na contestação à inspiração bucólica. Faz duas afirmação imediatas: "Ver vacas a pastar não faz a pessoa ser um escritor" e "não escrevo debaixo de um sobreiro". Ou seja, garante, o local onde escreve não é a única influência nos livros: "Tudo influi na maneira como escrevemos mas isso não muda muita coisa. As pessoas dizem-me muitas vezes que o campo deve inspirar muito e costumo responder que ver ovelhas não faz de ninguém um génio. Ninguém começa a escrever muito bem só porque está rodeado da natureza e de animais, o que pode fazer ser um bom escritor é a leitura."

Vamos lá a saber o porquê da opção pelo campo: "Foi pessoal, porque sempre achei que seria feliz na vida no campo após ter estado cerca de 30 anos em Lisboa." E não foi um choque de paisagem? "Claro, é completamente diferente, onde os dias têm uma tranquilidade diferente, mas só se nota quando se sai de casa. No interior, as habitações são relativamente parecidas: há uma televisão, sofás e o ecrã do computador. Quando estou a trabalhar, concentro-me naquilo que estou a fazer e o que sempre tive à minha frente foi um ecrã. Não escrevo debaixo de um sobreiro, mas a olhar para um monitor. Não interessa se é no campo ou na cidade." Quanto a ruído: "Aos do campo chama-se silêncio e como não são artificiais diluem-se na paisagem."

Não nega que ter ido para o campo o tenha influenciado: "Posso passar a escrever sobre certas coisas no cenário do Alentejo, como em Jesus Cristo Bebia Cerveja, em vez de onde nasci, a Figueira da Foz, mas é porque agora reconheço as árvores e as ervas selvagens. Tudo só tem que ver com o conhecimento das próprias coisas, não muda o carácter da escrita."

Pergunta-se quando escreve em Bogotá ou ali é diferente? "Se estiver a escrever em Bogotá uma história passada no Alentejo, decerto que continuarei a escrever sem influência de Bogotá. Até porque é provável que esteja a escrever num quarto de hotel, a olhar para um ecrã e sem consciência de que estou em Bogotá. Os hotéis são todos iguais e o ecrã é o mesmo."

Pondera voltar à cidade? "Não, gostamos muito de viver aqui. Se o fizermos é por causa das escolhas nos estudos dos filhos", afirma.

Miguel-Manso em Vale Pereiro

A conversa com o poeta Miguel-Manso dá-se enquanto faz uma caminhada entre pinheiros, momento em que repara nos vizinhos a cavar a terra. Diz algo que mostra a importância da ambiência em que vive: "Se tivesse nascido à frente de um pinheiro não lhe dava a importância que hoje tem." Antes de ir viver para uma casa de família que está a recuperar em Vale Pereiro, perto da Sertã, o campo não lhe era estranho pois nasceu em Almeirim: "Aos 20 anos fui estudar para Lisboa e fiquei por lá 15 anos. Como ficou difícil pagar as minhas contas e viver como queria, mudei." A capital foi muito importante para "ganhar mundo, ter conversas, leituras, diletância e uma boémia saudável", mas considera que "escreveria em qualquer lugar".

E o local altera a escrita: "Talvez, mas ainda é muito cedo para perceber de que forma e não serei o mais indicado para olhar para a minha escrita e dizer que a partir de dado momento fui por outro caminho. Também não publiquei muito desde que aqui estou e o Persianas foi escrito entre Lisboa e aqui - é de transição, apesar de já com a imaginação virada para aqui. A importância de Lisboa é que torna o autor mais fácil de ser aceite e favorece encontros."

O que mudou na vida de Miguel-Manso? "Faço coisas que desconhecia: agricultura, caminhadas. No outro dia um senhor da aldeia perguntou-me o que fazia. As pessoas dão importância a isso. Disse-lhe que era escritor e ele achou que eu era escriturário, que era a profissão mais parecida", diz.

O livro referido foi lançado na Sertã, mas acha que a sua aceitação na comunidade não se deve a ser poeta mas por causa da família, "querida na zona". No entanto, vai criando uma vida própria: "Faço uma rubrica de poesia na Rádio Condestável, cinco minutos para ler um poema e pôr uma música." Se esta atividade é própria para um poeta, já ter-se tornado instrutor de karaté é mais inesperada: "Pratico o desporto desde os 10 anos. Depois desisti porque precisava de algum desleixo na capital e agora regressei. Encontrei um corpo 15 anos mais velho mas sem estar esquecido da técnica."

Estar longe não significa ser esquecido pela crítica e os leitores? "Também não me importo se tal acontecer, embora os poetas conheçam muitos dos seus leitores, eu não sei bem o que se passa do outro lado. Gosto é da ideia de um certo refúgio."

Pondera voltar à cidade? "Claro, não pela carreira de escritor ou de poeta - porque até agora não há carreira. Está tudo em aberto pois não faço muitos planos. O que vivo faz sentido", considera.

Joel Neto nos Açores

O próximo romance de Joel Neto será também escrito na sua casa nos Açores mas, revela, situa-se em várias locais das ilhas, do país, da Europa e do mundo: "Passei o último ano a viajar por várias cidades dos Estados Unidos, República Checa, Alemanha e Inglaterra, e o facto de viver nos Açores obriga-me a fazer um trabalho de açambarcamento maior na investigação do que antes." Considera que o facto de viver longe o deixa fora de alguns fluxos: "Do ponto de vista do posicionamento dos meus livros, muda a nível académico, crítico e até comercial, mas também me deixa a salvo do que me irritaria." Outro benefício que encontra em morar fora das grandes cidades é proteger-se da uniformização criativa: "Há muita gente a escrever igual no universo da lusofonia porque as pessoas frequentam os mesmos lugares e submetem-se a códigos de linguagem e de pensamento iguais - são pastiches umas das outras. Viver longe dá-me um olhar mais assertivo sobre o mundo."

Uma coisa é certa, refere, não se entusiasma mais com o que acontece em Lisboa: "Não padeço da comoçãozinha do dia que domina o discurso da comunicação social e das redes sociais, que coloca toda a gente indignada da mesma maneira. Nem sinto necessidade de fazer parte de um único olhar do mundo. Sinto-me mais livre."

No que respeita à influência das paragens açorianas na escrita, Joel Neto não o nega: "Influi dramaticamente. Cada autor tem os seus objetos literários e os meus sempre foram aqueles que estão à minha volta e os da memória. Ter voltado para o local onde estão as grandes referências e reencontrar-me com elas, e ao mesmo tempo sentir o despertar de emoções que estavam adormecidas, permite-me um diagnóstico diferencial quando em confronto com os factos sobre o que entretanto se tinha bestializado." Daí que aceite que essa "influência dramática" se note nos seus últimos livros: "Viver no campo tornou-me uma pessoa muito menos cínica e sombria do que resulta manter-me distante de um determinado modo de pensar instituído. Não é necessariamente um olhar do campo, é o debate com a possibilidade de um outro tipo de inteligência e de abordagem literária da existência humana só possível num cenário deste género."

O ritmo da escrita também mudou em Joel Neto, pois consegue ser mais disciplinado. Existem outros contras: "Apesar de haver mais silêncio, não faltam tarefas mundanas quando se vive numa casa de campo. Perde-se tempo com coisas que não acontecem num apartamento da cidade." Ou seja, explicita, "as coisas deterioram-se, há animais, o jardim cresce", mas contrapõe: "São menores as solicitações sociais, os compromissos de networking e das capelinhas intelectuais literárias e jornalísticas. Passei a ter uma rotina fixa, acordo muito cedo, trabalho muitas horas e o tempo livre é aproveitado de maneira mais útil."

Quanto à escolha do tema literário, também muda tudo: "Não só na escolha como no tratamento, mesmo que continue a escrever sobre os mesmos assuntos: o regresso e a viagem entre o velho e o novo mundo, temas tangentes aos que escrevia. O tratamento é que se tornou muito distinto, mais esperançado e solar, e isso tem que ver com a paisagem física porque as estações renovam-se perante o nosso olhar em permanência."

Pondera voltar à cidade? "Posto de parte não está, mas já passou o tempo que estava pensado, quatro anos e meio, e não nos passa pela cabeça voltar a Lisboa", assegura.

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