Num dos seus contos de juventude, Eça imagina a reforma antecipada do Senhor Diabo, que, depois de um inesperado desgosto amoroso, declara "risível a Obra dos Seis Dias" e anuncia a intenção de ir "para o meio da Natureza, pôr-me sossegadamente a morrer". Essa terna ficção foi agora desmontada pela TVI, que nos demonstrou esta semana que o Diabo ainda vive no meio da Natureza, mais precisamente entre os bosques cerrados e monólitos graníticos da Póvoa do Lanhoso, onde as suas funções actuais consistem em receber com berros vigorosos os concorrentes do novo programa da estação. "Eu sou o César... mas toda a gente me trata por Diabo... Bem-vindos ao Inferno", informa-os durante as apresentações, como qualquer outra pessoa diria "olá, eu sou o António, mas os meus amigos chamam-me Tozé".. 50 Horas foi gravado na Diverlanhoso, que soa ao nome de um animal inventado por Lewis Carroll, mas é apenas um Parque de Aventuras no Minho. É lá que chegam os doze concorrentes, divididos em três famílias, para se "submeterem ao desconhecido, ultrapassarem desafios extremos e lutarem para chegar ao seu destino": no fundo os impulsos de superação física e emocional que desde tempos imemoriais inspiram os seres humanos a enfrentar os elementos de um planeta hostil, ou a tentar viajar num Intercidades..Os doze concorrentes começam por atravessar um rio a nado. Depois sobem uma colina. Depois rastejam por um charco. Depois sobem outra colina. Depois enfiam-se num buraco. Depois trepam para fora do buraco. O orientador, empenhado em fazê-los comer o pão que o Diabo amassou, vai gritando pregões motivacionais: "QUERO VER ESSAS COSTAS LEVANTADAS! SIGA! SIGA! BAIXEM O RABO! O RABO! PARA BAIXO!".As instruções tornam-se cada vez mais arbitrárias, seguindo a lógica surreal dos sonhos, das praxes, ou das recrutas militares. "Peguem na mochila! Agora larguem a mochila! AGORA PEGUEM NESTE TRONCO DE ÁRVORE!" Na prova que dá acesso ao pequeno-almoço, uma das famílias fracassa, e uma maçã tem de ser dividida por doze pessoas. O elemento culpado chora. "Vá, não podes ir abaixo psicologicamente", diz-lhe a filha. "Por acaso a parte pior está a ser a física", explica ele, "principalmente os braços". Outro membro da família intervém com optimismo: "Então, depois dos braços, ainda tens as pernas". Mas nada feito; o elemento é expulso do grupo enquanto o Diabo esfrega um olho. A prova seguinte requer que as três famílias empurrem pneus de 180 quilos por uma ribanceira acima. A família reduzida a três elementos sofre mais dificuldades que as famílias de quatro elementos, comprovando assim uma das verdades constantes no confronto entre o Homem e a Natureza: quando é preciso empurrar um pneu de 180 quilos por uma ribanceira acima, não vá o Diabo tecê-las, nenhuma família é demasiado numerosa..Outra prova de superação humana podia ser vista no AXN White, que fez o favor de retransmitir Hidalgo , um excepcionalmente péssimo filme de 2004 sobre um cowboy americano que atravessa o oceano para participar numa lendária corrida de cavalos nos desertos do Médio Oriente. Quando lá chega, encontra Omar Sharif, com cara de quem ficou ali à espera desde que acabaram as gravações de Lawrence da Arábia, e que reconhece imediatamente no cowboy americano um avatar da mesma figura: o intrépido homem branco que vai viver entre os bárbaros, com os seus estranhos costumes, para lhes ensinar valiosas lições. O filme foi promovido pela Disney como "baseado numa história real", na medida em que o argumento recupera a biografia imaginária de um épico charlatão chamado Frank T. Hopkins, que nas primeiras décadas do século XX conseguiu convencer meia dúzia de jornalistas crédulos de que trabalhara com Buffalo Bill, participara na batalha de Wounded Knee, fora amigo íntimo de Teddy Roosevelt, vencera essa mítica corrida de quase cinco mil quilómetros no deserto, e mais uma série de proezas que não lembram ao Diabo. Nenhuma delas era verdade..Frank Hopkins teria mais dificuldades em construir a sua lenda nos dias de hoje, quando a luta contra a difusão de factos incorrectos é mais feroz do que nunca. A TVI tem estado na linha da frente desse combate, primeiro com a Máquina da Verdade de Fátima Lopes (que continua, semanalmente, a provar a culpa ou a inocência de possíveis adúlteros, vigaristas e bruxos), e agora com o novo programa de José Eduardo Moniz, Deus e o Diabo .."Vamos verificar factos... para não deixar mentiras à solta", prometeu na estreia. O episódio desta semana começou com uma montagem de várias manifestações (bombeiros, estivadores, barreiras derrubadas, etc). "Aqui temos o país real", explicou Moniz, "mais perto do Diabo do que de Deus". Será este o governo da paz social? Moniz acha que não: "Eu não tenho dúvidas, e duvido que alguém as tenha. Foi, portanto, chão que deu uvas.".Nem sempre o floreado retórico é necessário para verificar os factos. Moniz desenvolveu um sistema estenográfico de enorme precisão em que complexas mensagens semânticas são transmitidas através de gestos. Quando cerra os punhos e fricciona lentamente os nós dos dedos uns contra os outros, por exemplo, isso significa que 23% das receitas da EMEL vêm das contra-ordenações. Quando toca as pontas dos indicadores e os revolteia em espiral na direcção da câmara, isso significa que o número de faltas injustificadas dos deputados da Assembleia da República é uma autêntica vergonha. Quando abre as mãos com as palmas viradas para a frente e os dígitos bem separados, isso significa que o actual governo criou catorze impostos novos. Por vezes, para benefício do comum dos portugueses, reverte à explicação oral: "Nesta lista há alguns impostos que nem eu sei o que são, quanto mais o comum dos portugueses", diz aos comuns dos portugueses, num tom apaziguador..Um dos convidados da semana foi o antigo ministro da Saúde, apresentado por Moniz como "Adalberto Campos... Ferreira... desculpe... Fernandes", num empolgante exemplo de verificação de factos em tempo real. O segundo convidado foi Carlos Carreiras, do PSD, prontamente confrontado com as declarações recentes de Teresa Leal Coelho, que o apontavam como líder da guerrilha interna contra a liderança de Rui Rio. Moniz foi direito ao assunto: "O senhor é ou não é a besta negra do PSD?" Carreiras reflectiu uns segundos: "Posso ser uma besta, mas não sou negra... e não sou a besta do PSD." David Dinis, que por algum motivo esotérico também estava presente no estúdio, tratou de tomar as medidas jornalisticamente necessárias para verificar esse facto: "Você é um conspirador?" Foi uma artimanha de génio, pois a História ensina que a melhor maneira de desmascarar um conspirador é perguntar-lhe directamente se é um conspirador, de preferência na televisão. Carreiras voltou a negar, e o facto ficou assim devidamente verificado, pelo menos durante as próximas décadas, até um criativo produtor de Hollywood pegar na história e fazer um filme em que Carlos Carreiras não só foi conspirador como trouxe a paz social à Europa inteira depois de derrotar Rui Rio numa corrida de cavalos.
Num dos seus contos de juventude, Eça imagina a reforma antecipada do Senhor Diabo, que, depois de um inesperado desgosto amoroso, declara "risível a Obra dos Seis Dias" e anuncia a intenção de ir "para o meio da Natureza, pôr-me sossegadamente a morrer". Essa terna ficção foi agora desmontada pela TVI, que nos demonstrou esta semana que o Diabo ainda vive no meio da Natureza, mais precisamente entre os bosques cerrados e monólitos graníticos da Póvoa do Lanhoso, onde as suas funções actuais consistem em receber com berros vigorosos os concorrentes do novo programa da estação. "Eu sou o César... mas toda a gente me trata por Diabo... Bem-vindos ao Inferno", informa-os durante as apresentações, como qualquer outra pessoa diria "olá, eu sou o António, mas os meus amigos chamam-me Tozé".. 50 Horas foi gravado na Diverlanhoso, que soa ao nome de um animal inventado por Lewis Carroll, mas é apenas um Parque de Aventuras no Minho. É lá que chegam os doze concorrentes, divididos em três famílias, para se "submeterem ao desconhecido, ultrapassarem desafios extremos e lutarem para chegar ao seu destino": no fundo os impulsos de superação física e emocional que desde tempos imemoriais inspiram os seres humanos a enfrentar os elementos de um planeta hostil, ou a tentar viajar num Intercidades..Os doze concorrentes começam por atravessar um rio a nado. Depois sobem uma colina. Depois rastejam por um charco. Depois sobem outra colina. Depois enfiam-se num buraco. Depois trepam para fora do buraco. O orientador, empenhado em fazê-los comer o pão que o Diabo amassou, vai gritando pregões motivacionais: "QUERO VER ESSAS COSTAS LEVANTADAS! SIGA! SIGA! BAIXEM O RABO! O RABO! PARA BAIXO!".As instruções tornam-se cada vez mais arbitrárias, seguindo a lógica surreal dos sonhos, das praxes, ou das recrutas militares. "Peguem na mochila! Agora larguem a mochila! AGORA PEGUEM NESTE TRONCO DE ÁRVORE!" Na prova que dá acesso ao pequeno-almoço, uma das famílias fracassa, e uma maçã tem de ser dividida por doze pessoas. O elemento culpado chora. "Vá, não podes ir abaixo psicologicamente", diz-lhe a filha. "Por acaso a parte pior está a ser a física", explica ele, "principalmente os braços". Outro membro da família intervém com optimismo: "Então, depois dos braços, ainda tens as pernas". Mas nada feito; o elemento é expulso do grupo enquanto o Diabo esfrega um olho. A prova seguinte requer que as três famílias empurrem pneus de 180 quilos por uma ribanceira acima. A família reduzida a três elementos sofre mais dificuldades que as famílias de quatro elementos, comprovando assim uma das verdades constantes no confronto entre o Homem e a Natureza: quando é preciso empurrar um pneu de 180 quilos por uma ribanceira acima, não vá o Diabo tecê-las, nenhuma família é demasiado numerosa..Outra prova de superação humana podia ser vista no AXN White, que fez o favor de retransmitir Hidalgo , um excepcionalmente péssimo filme de 2004 sobre um cowboy americano que atravessa o oceano para participar numa lendária corrida de cavalos nos desertos do Médio Oriente. Quando lá chega, encontra Omar Sharif, com cara de quem ficou ali à espera desde que acabaram as gravações de Lawrence da Arábia, e que reconhece imediatamente no cowboy americano um avatar da mesma figura: o intrépido homem branco que vai viver entre os bárbaros, com os seus estranhos costumes, para lhes ensinar valiosas lições. O filme foi promovido pela Disney como "baseado numa história real", na medida em que o argumento recupera a biografia imaginária de um épico charlatão chamado Frank T. Hopkins, que nas primeiras décadas do século XX conseguiu convencer meia dúzia de jornalistas crédulos de que trabalhara com Buffalo Bill, participara na batalha de Wounded Knee, fora amigo íntimo de Teddy Roosevelt, vencera essa mítica corrida de quase cinco mil quilómetros no deserto, e mais uma série de proezas que não lembram ao Diabo. Nenhuma delas era verdade..Frank Hopkins teria mais dificuldades em construir a sua lenda nos dias de hoje, quando a luta contra a difusão de factos incorrectos é mais feroz do que nunca. A TVI tem estado na linha da frente desse combate, primeiro com a Máquina da Verdade de Fátima Lopes (que continua, semanalmente, a provar a culpa ou a inocência de possíveis adúlteros, vigaristas e bruxos), e agora com o novo programa de José Eduardo Moniz, Deus e o Diabo .."Vamos verificar factos... para não deixar mentiras à solta", prometeu na estreia. O episódio desta semana começou com uma montagem de várias manifestações (bombeiros, estivadores, barreiras derrubadas, etc). "Aqui temos o país real", explicou Moniz, "mais perto do Diabo do que de Deus". Será este o governo da paz social? Moniz acha que não: "Eu não tenho dúvidas, e duvido que alguém as tenha. Foi, portanto, chão que deu uvas.".Nem sempre o floreado retórico é necessário para verificar os factos. Moniz desenvolveu um sistema estenográfico de enorme precisão em que complexas mensagens semânticas são transmitidas através de gestos. Quando cerra os punhos e fricciona lentamente os nós dos dedos uns contra os outros, por exemplo, isso significa que 23% das receitas da EMEL vêm das contra-ordenações. Quando toca as pontas dos indicadores e os revolteia em espiral na direcção da câmara, isso significa que o número de faltas injustificadas dos deputados da Assembleia da República é uma autêntica vergonha. Quando abre as mãos com as palmas viradas para a frente e os dígitos bem separados, isso significa que o actual governo criou catorze impostos novos. Por vezes, para benefício do comum dos portugueses, reverte à explicação oral: "Nesta lista há alguns impostos que nem eu sei o que são, quanto mais o comum dos portugueses", diz aos comuns dos portugueses, num tom apaziguador..Um dos convidados da semana foi o antigo ministro da Saúde, apresentado por Moniz como "Adalberto Campos... Ferreira... desculpe... Fernandes", num empolgante exemplo de verificação de factos em tempo real. O segundo convidado foi Carlos Carreiras, do PSD, prontamente confrontado com as declarações recentes de Teresa Leal Coelho, que o apontavam como líder da guerrilha interna contra a liderança de Rui Rio. Moniz foi direito ao assunto: "O senhor é ou não é a besta negra do PSD?" Carreiras reflectiu uns segundos: "Posso ser uma besta, mas não sou negra... e não sou a besta do PSD." David Dinis, que por algum motivo esotérico também estava presente no estúdio, tratou de tomar as medidas jornalisticamente necessárias para verificar esse facto: "Você é um conspirador?" Foi uma artimanha de génio, pois a História ensina que a melhor maneira de desmascarar um conspirador é perguntar-lhe directamente se é um conspirador, de preferência na televisão. Carreiras voltou a negar, e o facto ficou assim devidamente verificado, pelo menos durante as próximas décadas, até um criativo produtor de Hollywood pegar na história e fazer um filme em que Carlos Carreiras não só foi conspirador como trouxe a paz social à Europa inteira depois de derrotar Rui Rio numa corrida de cavalos.