Veneza está conquistada pela peculiaridade de Emma Stone

Yorgos Lanthimos, com a ajuda de Carminho, e Wes Anderson, numa curta inesperadamente perfeita, são as grandes sensações do arranque da 80.ª desta Mostra. Mas há também percalços e o de Luc Besson não morde, nem ladra...
Publicado a
Atualizado a

A poeira ainda não assentou no Lido sobre a ovação a Pobres Criaturas, o melhor filme de Yorgos Lanthimos desde Canino, uma comédia sexual e absurda passada entre Lisboa, Paris e Londres. Uma fantasia de época que nos apresenta uma mulher criada por um cientista louco, uma mulher com o cérebro de uma criança, alguém que descobre cedo a sua libido e um desejo pelo conhecimento numa sociedade patriarcal.

Na dimensão da estranheza de A Lagosta ou O Sacrifício de um Cervo Sagrado, o cinema de Yorgos Lanthimo atinge aqui o estado certo de surrealismo, sobretudo ao nível plástico onde a sua habitual câmara de olho de peixe tem mais justificação de existir num universo de anacronismos insanos e um design que finta os desígnios da estética de Tim Burton, flirtando com o "look" de Wes Anderson. Isto numa história que é bem contada e que é essencialmente o retrato de um apetite sexual e de igualdade de género de uma mulher a conhecer o mundo e o seu corpo. O grego, a trabalhar com orçamento da Disney, faz o filme "art-horny" que sempre sonhou e com uma liberdade que permite um caráter singular: Poor Things, tem a sua assinatura clara mas não se parece com nada. Tem até um hedonismo mais crispado do que o habitual, uma anomalia de Hollywood que espanta com um humor desviante, culto e muitas vezes perverso. Um filme do lado de um feminismo nada óbvio.

Claro que entre nós, será mais falado por ter Carminho a cantar a contracenar com Emma Stone na deambulação da "criatura" por uma Lisboa de compostura onírica e utópica, conforme o DN já noticiou. Uma Lisboa reinventada e imaginada segundo uma aura de fado, elétricos que circulam por cima, balões em forma de zeppelin, pastéis de nata, restaurantes, hotéis chique-pitorescos e onde Stone se espanta com Carminho e o seu fado O Quarto, canção tradicional cantada numa varanda e com a fadista vestida com traje tradicional e a tocar uma belíssima guitarra portuguesa. Quase como uma casa de bonecas excêntrica e de beleza arrepiante, aliás como toda a construção cénica e o desejo teatral do filme.

Essa tendência de encenação de uma ideia de artifício está também expressa em The Wonderful Story of Henry Sugar, curta de 37 minutos para fazermos as pazes com Wes Anderson, cineasta que neste circuito dos festivais já teve melhores dias. Neste pequeno conto de Roald Dahl, o cineasta americano volta a estar perto de uma linguagem onde as palavras parecem estar mais perto de uma encenação de palco, sempre por entre matrioscas de narrativa que são de um mimo entusiasmante. O próprio visual "à Wes Anderson" está mais depurado, mais perto de valores de uma curiosíssima contaminação de cenários de teatro com mecanismos de decoração de animação stop-motion, embora o rigor horizontal da posição dos atores se mantenha. E aí estamos certos que é Wes Anderson a ser Wes Anderson até à medula.

A curta-metragem da Netflix (no final do mês já todo o mundo pode descobrir) trata de um caso impossível da medicina: um idoso indiano que tem a habilidade de não precisar dos seus olhos para ver e como esse seu exemplo muda a vida de um londrino abastado de nome Henry Sugar. Atores como Ben Kingsley, Dev Patel, Ralph Fiennes e Benedict Cumberbacht são perfeitos num estilo de narração oral que é explorada de forma radical numa experiência de partilha única. Apesar da palete das novas cores de Wes, este é um filme que podia ser visto de olhos fechados. Ou, como tal como a personagem de Ben Kingsley: dispensarmos os nossos olhos. Maravilha, não há outra palavra.

Voltando à competição, duas desilusões: Dogman, de Luc Besson e The Promised Land, de Nicolaj Arcel. O filme francês, falado em inglês e rodado na América, é, como no nome indica, o caso de uma espécie de homem-cão, um homem em cadeira de rodas que parece ter um poder especial sobre os cães. Besson, que não filmava há um certo tempo, está interessado em filmar a bold uma história de vingança. Fá-lo com golpes baixos sentimentais e atrai o espetador para ter pena de uma personagem abusada e que se torna drag queen, como se isso fosse sintoma de problema de saúde mental. Garante-se apenas que é penoso ver Caleb Landry Jones travestido de Piaf a cantar "Je ne Regrete Rien..." Custa pensar que um cineasta que fez Vertigem Azul não tenha a noção do ridículo.

The Promised Land é um épico dinamarquês inconsequente sobre os pioneiros das terras áridas de Jutland, nos confins da Dinamarca, em especial a odisseia de um capitão militar que sozinho aposta na plantação de batatas. Uma daquelas produções nórdicas endinheiradas a pensar no Óscar de melhor filme internacional, sem rasgos e com um guião sempre a prometer e a dar o previsível. Impressionante como consegue o "slot" da competição. Talvez apenas para tentar o prémio de melhor ator para Mads Mikkelsen, o melhor do filme...

Artigos Relacionados

No stories found.
Diário de Notícias
www.dn.pt