Velhos e sem dentes

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Morrer num lar, em circunstâncias miseráveis, deve ser o pior pesadelo que se pode ter sobre o fim da vida. Talvez não haja pobreza maior que esta. Mas sabemos que é o reflexo de um país onde as famílias tentam sobreviver desesperadamente para pagar contas e onde não há nem tempo, nem espaço, e às vezes nem saúde, para cuidar dos mais velhos.

Sabe-se que há bons lares, há os mais ou menos e há a maioria - sítios onde qualquer pessoa não gostaria de ficar dependurado até parar de respirar. A tragédia de Reguengos de Monsaraz é, por isso, uma possibilidade real, quotidiana, desta vez detetada por força da atenção da covid e do elevado número de vítimas em simultâneo. Um acaso.

Todos sabemos qual a solução dada ao problema: mais dinheiro do Orçamento para haver mais gente a apoiar os utentes. É bom, mas apenas um curativo mínimo numa ferida gigantesca. Realmente, a verdadeira solução, mais justa e transversal, seria aumentar o valor das pensões de sobrevivência (e das outras pensões de valores mais baixos). Isso tornaria possível que houvesse outras condições económicas para que muitos idosos, afinal, não tivessem de sair de suas casas ou da casa das famílias e pudessem ter, até, prestadores de cuidados no seu próprio domicílio. Contudo, se os lares fossem a melhor ou única solução, as pensões dessas pessoas financiariam de forma mais adequada as suas permanências nessas instituições.

Se auferissem de reformas mais dignas, talvez a velhice não fosse tão marcada pelo calvário da doença. Desde logo porque a necessidade mais básica - uma melhor alimentação - potenciaria mais saúde. Muitas vezes esta é a mais prejudicada pelo facto de boa parte do valor mensal da pensão ir para a farmácia. Basta fazer-se compras em supermercados onde muitos destes idosos se abastecem para se perceber que o critério é quase sempre o mesmo: o mais barato e em versão pouquinho.

A "União Europeia dos idosos" é talvez a instituição que falta criar. É verdade que sem negócios e ciência não haverá dinheiro para gerar uma rede de cuidados para os mais velhos, mas andamos há demasiados anos a varrê-los para debaixo do tapete. Não há, por exemplo, uma linha de fundos comunitários para majorar as pensões de miséria dos países mais pobres. E não passa pela cabeça dos eurocratas criar algo assim: ajuda humanitária permanente à pobreza dos idosos (e dos sem-abrigo).

Temos de mudar o rumo desta condenação, deste desamparo. Desde logo por eles. Mas se isso não bastasse, também porque a nossa vez está a chegar.

Faço um paralelo entre esta situação dos lares e uma outra, que me aflige há muitos anos: o "Portugal sem dentes", uma variação desta pobreza endémica, que não atinge só os idosos.

Quando lancei em 2002 um programa chamado Amadores, que depois deu origem à Liga dos Últimos (2005), pretendia retratar uma vida social que não cabia nos estereótipos formais da "Sociologia do Bairro Alto" ou dos média convencionais. Na verdade, frequentei muitas vezes o futebol amador em miúdo. Os jogos eram fraquinhos, mas a bancada tornava-se no melhor daquilo tudo. As pessoas eram felizes a jogar e faziam-no sem mais interesse que uma sandes e um banho no final. Os que iam ver os jogos queriam apoiar alguém da família ou, pura e simplesmente, a comunidade local em formato "camisola de clube".

Muitas - mesmo muitas - das pessoas mais pobres que frequentam o desporto amador, sobretudo no Interior, não têm dentes. É uma coisa que vem desde tempos ancestrais e que elas nem questionam: já foi assim com os avós, os pais, etc... Os primeiros passos do cheque-dentista do Serviço Nacional de Saúde são gotas de água para este oceano de carenciados.

Não ter dentes é o maior sinal exterior de pobreza possível.

A verdade é que a nossa assistência pública ostracizou muito a importância de se ter dentes. E esta carência oral é tão "normal" que chega a haver cheques-dentista não utilizados, todos os anos.

Há uma infindável quantidade de portugueses sem dentes. Quando a Liga dos Últimos os encontrava, foi algumas vezes criticada por os deixar falar na televisão. Era como se eles representassem uma ofensa ao nosso estádio civilizacional, que devia ser evitada.

A realidade era outra coisa: gente feliz, gente a apoiar o seu clube, gente a viver o domingo à tarde. Com e sem dentes. Porque parece que os mais pobres só têm direito a aparecerem nos média em situações de desgraça - ou programas diurnos que ninguém (exceto eles) vê.

Estas vidas de pobreza, de lares-prisões, têm zero de atenção. É a nossa incapacidade em ler os sinais diários, a vê-los morrer em direto por "covid", sem percebermos.

Quem manda no país ou escreve nos média, ou está mergulhado numa vida de classe alta ou média, está a milhões de quilómetros emocionais da dilacerante dor que cada uma destas pessoas, anónimas, traz consigo. Destruídos pelo ostracismo da vida. Esmagados por não terem situação económica que lhes permita mandar em si próprios. Quase sempre num labirinto mental de solidão.

Ser-se português (europeu) não pode passar por se estar condenado a morrer num lar, sem condições mínimas, ou num hospital semanas/meses a fio, porque ninguém mais o quer. Precisamos de dar condições às famílias para cumprirem em comum os seus destinos. Isto também faz parte integrante da coesão mental de um país.

Sim, como se vê todos os dias, este país não é para velhos. Mas seria essencial que passasse a ser.

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