Nas veias corre-lhe sangue cabo-verdiano, moçambicano, são-tomense, macaense e timorense, uma mistura de genes, mas também de culturas e de modos de ser tão diferentes, que ajudaram a moldar uma mulher e uma artista únicas, para quem a música é apenas um meio, e nunca um fim, para se sentir feliz. "Nasci cá, sou portuguesa, mas a minha família tem origens em diversos pontos de África e da Ásia", começa por se apresentar Vanessa Pires, 31 anos, agora mais conhecida como Chong Kwong, o nome de guerra herdado do bisavô macaense com que se tornou um caso sério de popularidade no hip-hop nacional.."Quando era pequena não pensava muito nisso, no ser diferente. Para mim, isso era normal, porque à minha mesa misturava-se cachupa com bacalhau e chao min com toda a naturalidade [risos]". Nascida em Lisboa e crescida no bairro periférico da Cova da Moura, na Amadora, só mais tarde percebeu que, afinal, era uma criança um pouco fora da norma. "Quando fui para a escola e comecei a lidar com outras pessoas percebi que afinal não havia assim tanta gente como eu, na rua. E acabei por me habituar às perguntas que invariavelmente surgiam", recorda..Afinal, não era bem branca, mas também não era negra. E os olhos rasgados ainda adensavam mais a curiosidade. Como o avô costumava dizer-lhe, em jeito de conselho: "Não és branca, não és preta, nem chinesa, vais ter de te habituar que vai ser difícil encaixar," Mas afinal até nem foi, porque a dada altura encontrou uma tribo onde a diferença não era questionada, pelo contrário, até era bem-vinda. "Na adolescência, queremos ser diferentes, mas também queremos ser aceites na nossa diferença e foi isso que o hip-hop me proporcionou", sustenta..Foi também por essa altura que começou a rimar, por cima de beats americanos, como era costume na altura. O clique surgiu após ouvir um dos temas incluídos no disco Beats Vol. 1: Amor, de Sam the Kid. "Era apenas um modo de me expressar, nunca tinha pensado em ser rapper, apenas queria contar a minha história." E ao mesmo tempo começou a escrever a sua própria história no hip-hop - a solo, também como integrante do projeto La Dupla - que, no entanto, acabaria por ser interrompido a meio, por opção própria. "Fiz uma pausa na música, porque estava muito desiludida com o rap, mas mais comigo própria. Ainda não sentia a responsabilidade e o nível de compromisso necessários para contar a minha história como ela realmente é", confessa..Busca pelas origens.Entretanto, foi estudar para a Ásia, mais em concreto para Macau, a terra natal de parte da família. "Quis conhecer de perto aquilo de que as minhas tias tantas vezes me falaram. Queria compreender melhor as minhas raízes asiáticas", sublinha. Pelo meio, foi também até Timor, outro território presente na sua árvore genealógica, onde, realça, aprendeu o valor da humildade. "Aprendi que na vida tudo tem o seu ritmo. Era uma pessoa muito impaciente e na Ásia aprendi a ser mais paciente, mas também percebi que não queria morrer assim, sem concretizar os meus sonhos." E a música, apesar de adiada, era um deles - "um dos mais importantes". Mas os anos foram passando e preferiu dedicar-se a uma bem-sucedida carreira profissional na área do turismo, na produção e promoção de eventos.."Desisti da música porque queria fazer mas não conseguia, mas o tempo e a vida mostraram-me que ainda não era a altura certa para isso", refere. E, quando sentiu que essa altura finalmente chegara, nem hesitou. "Estava naquilo que se pode considerar o topo da carreira profissional, mas desisti disso tudo e tornei-me outra vez freelancer, para ter tempo e poder dedicar-me de novo à música. Sentia-me finalmente preparada para isso", assegura. Quando anunciou a decisão à família, chamaram-lhe "doida", mas acabaram por aceitar, pois sabiam que a música é o que verdadeiramente lhe "mexe com a alma e com o coração"..No início do ano passado, fundou a Blasian Drip, uma editora independente com a qual editou o single de estreia homónimo Chong Kwong, para dar a conhecer o novo projeto a solo, assim batizado em homenagem ao tal bisavô com o mesmo nome. As referências asiáticas são óbvias, tanto na sonoridade como na letra: "Eu não sou de aço, eu sou de bambu (...) meu braço é kung-fu." Todavia, a mistura de culturas de que é feita é desvalorizada pela própria, pelo menos ao nível da música que faz: "O ponto de partida é sempre o rap e o hip-hop, essa é a minha raiz e a minha escola, mas também não me limitar a isso, até porque não gosto nada de rótulos." A prova disso mesmo está no novo singleLotus, recentemente editado, um tema de sonoridade mais R&B, que aponta agora a bússola para latitudes mais próximas da América do Norte.."Os primeiros temas que lancei eram mais aquele rap puro e duro, como sempre fiz, mas depois percebi que não queria que o meu primeiro disco fosse apenas isso. Queria fazer música para ser ouvida, daí essa opção por uma onda mais R&B", explica. Reconhece que o álbum, com o título Filha da Mãe e edição inicialmente prevista para maio (mas entretanto adiado devido à pandemia), "é, acima de tudo, resultado de um processo de crescimento pessoal", durante o qual aprendeu "a olhar para dentro" e a falar de assuntos relacionados com a sua "própria vulnerabilidade". Uma descoberta que classifica como "um verdadeiro holy grail em termos criativos", até porque o rap mais tradicional aponta precisamente para o sentido contrário - "tem sempre mais que ver com um certo show-off de que somos os melhores e os maiores em tudo"..E é, também, um meio muito masculino, em que as mulheres ainda estão claramente em minoria. Vanessa encolhe os ombros com a provocação: "Sim, é um facto, mas não é só no hip-hop. Nas empresas, que é um meio que conheço bem, também é assim, ou pior, porque há mulheres a fazer o mesmo trabalho e a receber menos do que os homens. Ainda hoje isso acontece." Recusa, por isso, ser uma espécie de bandeira para o hip-hop feminino, outro rótulo que a faz torcer o nariz. "Nunca me coloquei no papel do underdog, mas cedo percebi que por vezes tinha de provar mais para ser levada a sério e ainda hoje lido com questões com as quais preferia não ter de lidar. Sabia que tinha de ser cada vez melhor se queria chegar à primeira liga e não apenas ser a melhor das mulheres", salienta. E não demorou muito a chegar lá, pois, apenas poucos meses depois de editar os primeiros singles, estreava-se ao vivo nalguns dos maiores palcos nacionais, como o do NOS Alive ou o do Meo Sudoeste. "Foi uma responsabilidade imensa e estava bastante ansiosa, com medo de me enganar ou de cair do palco [risos], mas acabou por correr muito bem, felizmente.".O "empoderamento", uma palavra muito em voga também no hip-hop, não é portanto um conceito novo para Vanessa, que desde muito cedo percebeu que tinha de depender apenas de si própria. "Foi assim que fui educada. Na minha casa foram sempre as mulheres a levar o barco para a frente. O melhor conselho que a minha mãe me deu foi o de ser independente, para nunca precisar de ninguém para sobreviver", lembra. E nem mesmo o facto de viver num ambiente dominado pela cultura africana, "onde havia muitas reservas e até algum preconceito para com as mulheres independentes", a travou.."Esse tal empoderamento faz parte de mim enquanto pessoa, não tem só que ver com a música. E é isso que as mulheres têm de fazer, individualmente, nas suas vidas - provar que são tão boas ou melhores do que os homens, em tudo!"