Foram pensados como temas avulsos, mas quando ouvidas em conjunto as cinco novas canções de Valete funcionam como um todo, transformando-se numa espécie de EP ou de miniálbum, que transporta o ouvinte ao longo de uma "viagem musical", mas também pessoal, a do seu autor (a através dele todos nós), por estes estranhos tempo de pandemia..Apesar de bastante ricos em ambientes musicais, Olimpo, Viaja, Indústria dos Sonhos, Rua do Poço dos Negros e Ilha de Honshu são temas criados na velha escola do hip hop mais militante, que mais uma vez reforçam a posição de Valete enquanto "rapper social e progressista". Foram gravados ao longo de cinco semanas, entre os meses de junho e julho, durante um período de confinamento autoimposto, já depois de terminado o confinamento nacional.."Tinha um negócio no mercado do Airbnb que faliu, fiquei sem concertos e vi muita gente à minha volta desesperada com a brusca quebra de rendimentos", recorda o músico. Essas semanas coincidiram igualmente com a morte de George Floyd e todos os protestos e debates que foram gerados em torno do acontecimento também lhe serviram de inspiração, como revela nesta entrevista ao DN..Apesar de criados em momentos diferentes, quando ouvidos de seguida, parece haver um fio condutor entre estes temas, concorda? Sim, não foi pensado dessa forma, mas, de facto, dá para ouvir como um EP, porque os temas foram bem alinhados e acabam por proporcionar uma viagem musical ao ouvinte..Há um lado de revolta, mas também de esperança em todos estes temas, que soam um pouco a este estranho tempo em que vivemos. Sem dúvida que tem essas duas componentes e também um certo ambiente de hip hop clássico, de militância pelas causas e de competência nas rimas, para mostrar as minhas aptidões enquanto rapper. Mas apesar dessa homogeneidade são temas igualmente abrangentes, em termos sonoros e musicais..E que acabam por sair um pouco desse universo mais clássico do hip hop... Sei que foi o hip hop clássico que me pariu, mas também sei que serei muito mais rico enquanto artista se conseguir ir beber a todas as coisas boas que entretanto vão aparecendo, em termos musicais. A boa música é sempre boa música, seja ela de agora ou de há um século..Em Olimpo fala dos "reis do hip hop que é pop", a quem promete "o apocalipse", e em Ilha de Honshu também parece enviar recados a alguém quando diz "não sei como ainda vais à TV, foi grande paródia a tua entrevista no CC". Porquê esta aparente necessidade de conflito com outros rappers, que já se tornou uma das suas imagens de marca? Não há qualquer intenção de iniciar um conflito com os outros rappers, nem nunca o fiz, aliás. O que acontece é que o rap se tornou uma música de massas e há muita gente que não conhece ou não entende esta cultura. Uma das vertentes mais clássicas do rap é precisamente o rap de competição, que parece bastante conflituoso para quem está de fora, mas na realidade é só uma forma de nos picarmos uns aos outros. Uma afirmação do ego de cada um, se preferirem; não é mais que isso, um mero exercício de competição. E embora muitas vezes possa parecer que me estou a meter com alguém em particular, trata-se apenas de um jogo de rimas. Aliás, nesta altura estou muito mais interessado em incomodar a extrema-direita portuguesa do que outros membros da família do hip hop, a quem os considero a todos como irmãos..Estes temas foram todos feitos em junho e julho, quando se autoimpôs um confinamento, numa altura em que o resto das pessoas começava finalmente a sair de casa. Qual foi a razão desta decisão? A minha vida mudou muito por causa da pandemia e necessitava de um período de reflexão, porque a dada altura fiquei sem qualquer tipo de rendimentos. Tinha um pequeno negócio de aluguer de uma casa para turistas que caiu para zero, e também deixei de ter concertos. Sempre fui um empreendedor e não tenho feitio para ser empregado, mas qualquer tipo de investimento nesta altura seria apenas suicida. E durante esse processo de reflexão deu-me para fazer estas músicas. Senti-me mesmo muito inspirado por tudo o que se passou à minha volta e também acabou por ser uma espécie de solução, porque como estou em todas as plataformas de streaming, também acabei por fazer algum dinheiro com elas..Foi um período que também coincidiu com toda a contestação, a nível mundial, decorrente da morte de George Floyd. Foi esse facto que o inspirou a fazer Rua do Poço dos Negros, porventura o mais militante deste conjunto de temas? É um tema que tem mesmo a ver com isso, com o racismo, que também existe em Portugal, mas que as pessoas pareciam sentir-se melindradas em discutir. Era um tema que já queria abordar há muito tempo, mas era difícil, e a morte de George Floyd, enquanto acontecimento global, acabou por me abrir essa porta. É um debate muito necessário, mas que só agora está ser iniciado aqui, e os argumentos ainda estão todos a um nível muito básico, como se viu recentemente com a polémica com o Mamadou Ba. Há países que já vão no oitavo andar e nós ainda nem saímos do rés-do-chão, mas é um início e, como tal, é um passo importante. Talvez daqui a uns dez anos já consigamos falar uns com os outros sobre estes temas, com elevação.