Valentim Alexandre: "Uma descolonização exemplar supõe uma colonização exemplar"
Após ter publicado vários volumes sobre a história colonial portuguesa, Valentim Alexandre regista em novo livro o que decorreu devido à "resistência do Governo português em fazer reformas de fundo nas colónias no período de 1945 a 1960", época em que outros países o fizeram "tanto no plano político como no social". Estava-se, afirma, "no prenúncio de uma crise grave e a curto prazo" que dependia de "muitos fatores, em grande parte aleatórios".
Entre as fontes que consultou, destaca-se o "Arquivo Salazar", que considera ter "uma amplíssima documentação de relevância entre as "produzidas nas diversas instituições do Estado", ultrapassando assim "uma das principais dificuldades no estudo da questão colonial durante o Estado Novo". Como a das fontes com origem em organizações políticas, como o PCP, e dos relatórios da PIDE que, diz, contém uma "uma diferença abissal". Acrescenta que a produção historiográfica de Angola o ajudou "em muito a perceber o que se passava" nesse território.
Quanto a conclusões, apesar de esta investigação ir muito mais além do que já foi publicado, o historiador refere que "não há nada de definitivo na historiografia; tudo pode ser revisitado, aprofundado e posto em causa. Dar-me-ei por satisfeito, se a minha investigação contribuir para abrir caminho a outros trabalhos que a aprofundem, chegando porventura a conclusões diversas."
O governo português, ou melhor dizendo, Salazar, a partir de 1958 antecipou ou acompanhou de perto a evolução dos movimentos independentistas nas províncias ultramarinas, designadamente a de Angola?
Salazar acompanhou de muito perto a evolução das colónias do continente africano - Angola, Moçambique e Guiné -, bem como a de Goa. A documentação que lhe chegava a esse respeito era múltipla: os relatórios da Junta de Investigações do Ultramar - com a sua parte confidencial, onde se revelava o que nas colónias era incompatível com a imagem oficial, lusotropicalista, que delas publicamente se dava -; as informações da PIDE, muito numerosas nos anos de 1959 e 1960; a correspondência de Jorge Jardim, que não se limitava ao que se passava em Moçambique. Isto, para falar apenas dos núcleos principais. Sobre Angola, recebia, nomeadamente, os relatórios de Hélio Felgas, governador do distrito do Congo - a zona onde depois eclodiu a revolta de 15 de março de 1961.
Refere a "imprevidência do Governo" e o "nada ter feito para atalhar" a tensão em Angola. Concorda com estas acusações?
Sim, refiro que esse é um tópico recorrente em textos de diversa natureza que se ocupam das revoltas em Angola. A prova estaria no muito reduzido número de tropas existentes em todo o território angolano, nas vésperas da insurreição. A verificar-se, essa não seria, aliás, uma situação inédita, na história das revoltas recentes no continente africano. Como refiro na Conclusão do livro, nas colónias onde ocorreram grandes insurreições armadas - em Madagáscar, em 1947; no Quénia, em 1952; na Argélia, em 1954 -, no início era muito reduzida a presença de tropas da metrópole. Isso resultava da ideia, muito generalizada ainda por essa altura, de que as populações africanas, submetidas pelas campanhas de ocupação no início do século XX, se conformavam com o domínio dos brancos. Mas, em finais da década de 1950, essa ilusão desaparecera. No caso português, as autoridades, tanto ao nível local como ao nível central, tinham a consciência de que os tumultos registados desde janeiro de 1959 no Congo belga se podiam facilmente estender ao norte de Angola. Por isso, foram tomadas medidas cautelares, tendo em vista o reforço da vigilância nas zonas mais expostas. Para além disso, estava em curso desde finais de 1958 um processo de redefinição da política militar, tendente a dar prioridade à defesa dos territórios africanos - processo que analisei em pormenor em Contra o Vento e resumo neste novo livro. Essa redefinição ia ainda a meio, quando eclodiram as revoltas no norte de Angola. Em qualquer caso, pode ter-se por certo que não teria sido possível impedir a revolta - com raízes muito profundas -, mesmo que o plano previsto estivesse já por inteiro aplicado, com as tropas instaladas. Aliás, uma das zonas onde existia um batalhão - a de Carmona - foi das mais duramente atingidas pela revolta.
A reforma constitucional de 1951 pretendeu "vincular juridicamente" o império português a um "todo nacional indivisível". Foi uma boa "manobra" legal ou apenas a melhor solução política temporária para evitar a descolonização?
Essa é uma referência pontual a um processo que analisei no livro anterior, Contra o Vento. A ideia de integração nacional tinha uma longa tradição na história colonial portuguesa. Na prática, no entanto, o princípio assimilacionista que lhe está subjacente pouca influência teve nas colónias. O integracionismo teve sempre, na política imperial portuguesa, uma função retórica, de justificação da soberania, sobretudo quando esta se encontrava ameaçada. Tal foi também o caso em 1951. Ao transformar as colónias em "províncias", o Governo português mostrava não estar disposto a ceder a pressões para descolonizar - questão que, de momento, se punha apenas em relação à Índia portuguesa. Por outro lado, dava-se assim uma resposta às reclamações de algumas elites coloniais, nomeadamente de Goa e de Angola, insatisfeitas com a situação de subordinação que o Ato Colonial de 1930 lhes atribuía.
A elite política portuguesa estava consciente da grave crise que poderia estar para surgir em Angola?
A generalidade da elite política portuguesa, não. Mas, nos meios mais diretamente ligados à questão colonial, foi-se tomando consciência, a partir de 1955 (ano da Conferência de Bandung) das ameaças que se iam avolumando sobre os territórios africanos do império. A partir de finais de 1958, o que era tido como uma ameaça ainda longínqua revelou-se um perigo iminente, devido à rápida mutação do contexto internacional africano, com incidência nos territórios vizinhos das colónias portuguesas, e aos seus reflexos na ONU. A isto se acrescentava, noutro plano, a organização de movimentos nacionalistas africanos das colónias portuguesas, de cuja atividade, no exterior e no interior, embora ainda embrionária, as autoridades de Lisboa começavam a recolher indícios. Essa tomada de consciência esteve na origem de dois documentos secretos, dirigidos em 1959 a Salazar, sugerindo alterações na política "ultramarina" e na política externa com ela relacionada - documentos que analisei em Contra o Vento. Assinavam cada um desses textos cerca de uma dezena de altos funcionários do regime, pela maior parte ligados aos ministérios do Ultramar e dos Negócios Estrangeiros - entre eles, Adriano Moreira e Franco Nogueira.
O papel dos EUA foi frequentemente de contestação à política colonial portuguesa. Tal atitude cristalizou a de Salazar?
Após a II Guerra Mundial, os Estados Unidos defendiam para África uma via de transição pacífica dos territórios coloniais para o autogoverno e a independência, em estreita cooperação com as respetivas metrópoles - o que contrastava com a linha de intransigência absoluta, em defesa do império, seguida por Salazar. Mas a atitude assumida por Washington foi de grande complacência para com Portugal, neste domínio, ao longo de toda a década de 1950. Em 1960 - ano final da administração Eisenhower -, prevaleceu ainda uma linha de contemporização. A grande viragem deu-se em começos de 1961, com a presidência de John Kennedy. A 7 de março, Salazar foi notificado de que, caso Portugal não encetasse uma ação gradual com vista à autodeterminação dos seus territórios ultramarinos, os Estados Unidos lhe retirariam o seu apoio - o que passaram de facto a fazer, nomeadamente nas votações na ONU. Salazar resistiu a esta injunção, manifestando desde logo a determinação de manter a sua política em relação ao "ultramar", que, a seu ver, tinha o apoio da grande maioria do povo português. Não creio, no entanto, que se possa dizer que a atitude americana "cristalizou" a de Salazar - esta já estava "cristalizada" antes.
A implosão do Congo Belga, a par de outras independências em "colónias" à sua volta, foi fundamental para uma sublevação tão radical em Angola?
Nos anos de 1960-1961, estava-se no ponto culminante do processo de descolonização iniciado logo após o fim da II Guerra Mundial. A independência do Gana, em 1957, tivera grande repercussão em toda a África, onde as notícias circulavam agora com maior celeridade, difundidas pela rádio. Os territórios sob a soberania portuguesa foram diretamente influenciados pela evolução dos países vizinhos, tanto no caso da Guiné, por efeito da independência da Guiné francesa, em 1958, como sobretudo no caso de Angola, por força da turbulência que marcou a vida política do Congo belga, levando à sua independência em finais de junho do ano seguinte, arrastando-se depois num longo período de motins e tumultos. Esta evolução teve uma influência determinante na do norte de Angola. A afinidade étnica das populações dos dois lados da fronteira tornava inevitável a transmissão, não apenas das notícias, mas também das aspirações políticas: dada a independência do Congo belga, o domínio colonial tornava-se menos suportável na parte angolana, deixando de ser vista como um mal inevitável.
Foi inesperada a dispersão por três frentes da contestação em Angola no início de 1961?
Cada uma das revoltas tem motivações específicas. A da Baixa de Cassange está ligada à cultura forçada do algodão a que as populações da região estavam submetidas, com prejuízo das culturas alimentares, e em benefício de grandes sociedades como a Cotonang. A revolta de 4 de Fevereiro, em Luanda, é sobretudo, no seu lado mais imediato, uma reação contra as vagas de prisões a que a PIDE aí procedia, desde 1959. A insurreição de 15 de Março tem por pano de fundo a cultura do café, que trouxera consigo a expropriação das terras das populações africanas e o trabalho forçado através do chamado "contrato". Mas há entre elas um ponto de união, que explica a sua eclosão quase simultânea: a influência da efervescência política e social do vizinho Congo.
Qual das três foi mais desestabilizadora: a Baixa do Cassange, os assaltos às prisões ou o 15 de Março?
Foi sem dúvida a insurreição de 15 de Março, que abrangeu uma zona de cerca de 100 mil quilómetros quadrados, varrendo tudo à sua frente, em poucos dias - os colonos, os "bailundos" - vindos sob "contrato" do planalto central angolano - que para eles trabalhavam e as instituições em que o domínio colonial se fundava. Centenas de fazendas foram assaltadas. Durante meses, só houve no norte de Angola pequenos núcleos de população branca, numa ou outra povoação, acossados pelos insurretos. No resto do território angolano, a administração colonial não ficou imune a este terramoto, nomeadamente na própria capital e no corredor Luanda-Malange, a norte do Cuanza, onde a situação escapou muitas vezes ao controlo, com o enfraquecimento das hierarquias civis e militares. Por toda a parte, espalhou-se a insegurança e o pavor entre os brancos, por falta de confiança na capacidade do Estado para manter a ordem colonial. Foi neste quadro que se formaram as milícias, com peso e poderes diversos, consoante as zonas. No norte, assumiram a defesa da população branca e dos seus bens; mas passaram rapidamente a uma repressão indiscriminada, abatendo ou prendendo os suspeitos - todos os africanos, exceto os "bailundos" -, depois por elas mesmas torturados e eliminados ou entregues à PIDE para esses efeitos. No resto do território angolano, a ação das milícias fez-se sentir com particular intensidade na cidade de Luanda, visando os africanos residentes nos musseques, e na linha Luanda-Malange, onde a sua atuação se aproximou, pela violência, da registada no norte. A sul do Cuanza, até ao extremo sul, as milícias, formadas espontaneamente pelos colonos ou organizadas pelas grandes empresas, instauraram também o "terror branco", em colaboração com a PIDE, à qual entregaram milhares de suspeitos, cabendo a esta Polícia eliminá-los ou remetê-los para o campo de concentração de Missombo.
Citaçãocitacao"A insurreição de 15 de Março abrange uma zona de cerca de 100 mil quilómetros quadrados, varrendo tudo à sua frente em poucos dias. Centenas de fazendas foram assaltadas e, durante meses, só houve no norte de Angola pequenos núcleos de população branca."
Neste período a UPA tem direito à "existência", no entanto posteriormente será apagada do processo histórico. Porquê?
A UPA desencadeou a insurreição, que se prolongou pelos meses seguintes, mas acabou derrotada pelas forças enviadas da metrópole - derrota consumada pelo final de 1961, quando começou a dar-se o retorno das populações africanas do norte de Angola refugiadas no mato. A revolta não terminou, tomando a forma de guerrilha - processo que analisarei num novo livro, em fase de conclusão, chamado No Fio da Navalha. A UPA transformou-se pouco depois na FNLA e continuou a ter um papel importante nessa guerrilha. Mas não ganhou nunca dimensão nacional: foi sobretudo um movimento dos bacongos, do norte de Angola.
Como analisa a partir deste início de conflito a evolução/mudança da opinião entre os membros das Forças Armadas, bem como das suas chefias, durante os treze anos do conflito?
Com a falência do golpe de Estado conhecido por Abrilada, consumada a 13 de abril de 1961, saiu vencedora, no seio do regime, a corrente formada pelos salazaristas indefetíveis. Os militares, em geral, pensam então que, antes de mais, é necessário restabelecer a "ordem" em Angola. Uma vez a insurreição derrotada, em outubro de 1961, a situação parecia relativamente estabilizada, embora a revolta continue através da guerrilha. Em agosto, Salazar pôs fim às ilusões reformistas ainda subsistentes. O regime promoveu então a última grande manifestação de apoio à política seguida no "ultramar", enchendo o Terreiro do Paço e as ruas adjacentes. A guerra em África transformou-se num rio subterrâneo, uma realidade cujo curso se procurava escamotear à opinião pública nacional. O cansaço - entre a população em geral e entre os militares - vem a sentir-se mais tarde. Por volta de 1967, deram-se as primeiras manifestações de insatisfação dos militares, ainda muito ténues.
Refere a agenda ideológica da PIDE. Ao nível da documentação que consultou conseguiu apurar mais alguma verdade sobre a agenda política desta polícia que esclarecesse as instruções a partir da "metrópole"?
Em geral, a PIDE, nas suas informações, procurava comprovar que as revoltas em Angola eram o resultado duma conspiração internacional, de índole comunista, operada por agentes vindos do exterior. Essa era também a versão que o poder central tentava passar para a opinião pública. A PIDE ia por vezes mais longe, buscando implicar alguns setores em particular, como o dos padres católicos africanos ou o dos responsáveis e educandos das missões protestantes. Noutras fases, a PIDE procurou opor-se a qualquer intuito reformista das autoridades civis, por débil que fosse, ou ainda à nomeação de africanos para cargos públicos.
O entendimento destes quatro meses foi claro para os portugueses de então ou mantém-se como simples recordações ou factos quase obscuros como acontece com os portugueses do pós-25 de Abril e ainda os de agora?
Para a opinião pública da época, condicionada pela Censura e por instituições, como a RTP, que funcionavam como instrumentos de propaganda do regime, passava a ideia de que o país estava a ser vítima de um ataque externo, de origem comunista. Após um período de hesitação, o poder central, sobretudo a partir de meados de abril de 1961, fez circular a informação relativa aos massacres de 15 de Março, os assaltos às fazendas, etc., a fim de mobilizar o país para a guerra. Em outubro de 1961, esta foi dada por finda, e a informação sobre ela desapareceu. Em Portugal, muito pouco se sabia sobre o que realmente se passava em Angola.
Refere a situação dos portugueses antes e durante estes quatro meses. Poderia antecipar-se o chamado regresso dos "retornados" se o conflito não encontrasse uma solução política e viesse a resultar numa independência incondicional?
Havia um exemplo recente de êxodo da população europeia, em 1960, logo após a independência do Congo belga; e dar-se-á um outro pouco depois, em 1962, com a independência da Argélia. Só um processo de transição pacífica muito bem conduzido poderia talvez evitar uma retirada precipitada. Uma descolonização exemplar supõe uma colonização exemplar - que não existe.
dnot@dn.pt
Valentim Alexandre
Editora Temas e Debates
472 páginas
A memória da Guerra Colonial do lado de cá e de lá
Quase a terminar, surge no romance Por entre os Trilhos da Memória a seguinte frase: "A Guerra Colonial, ultrapassadas tantas décadas, ainda marca presença no quotidiano dos que a viveram." Ou seja, nunca é demais reavivar a memória de um tempo que entrou à força na vida de centenas de milhares de jovens portugueses entre 1961 e 1974 e Faria Artur teima nesse recordar através de um seu novo romance, que se segue a dois livros anteriores, Perdidos Num Verão Quente e Amor, Ioga e Net ou a Crónica do Senhor Alferes, formando, para já, uma trilogia em que a própria vivência do autor alimenta uma narrativa em que grande parte dos factos e das experiências de um outro tempo em África estão bem presentes.
Tal como nas outras duas obras, há um balancear entre os acontecimentos no campo de batalha e o que preenche a mente dos militares destacados para longe do continente, bem como a vida anterior e posterior à mobilização. Neste volume, prevalece um contar intervalado entre os momentos vividos antes da ordem de partida e os de arma ao ombro, que refazem essa época a vários níveis, trazendo para a atualidade tanto a caracterização da alma de um antigo país como os medos do esforço de guerra em que estiveram envolvidos. O que torna esta história bastante diferente do que já foi relatado por outros escritores - nunca serão demais - é esse diálogo entre a "pátria" de cá e as terras de lá, que revela um mundo deturpado - e esquecido - em poucas décadas, que surpreenderá o leitor tanto pela riqueza de detalhes como pela potência da escrita. A ler.
Faria Artur
Editora Âncora
178 páginas
David Diop e a guerra que mereceu o Booker Prize
A cor das guerras é sempre a mesma: vermelha de sangue. Mas, o escritor David Diop, de origens senegalesas, deu-lhe outra tonalidade: negra. O relato curto, mas inesperado, valeu-lhe o Prémio Booker Internacional no ano passado e não é por acaso que a sua tradução passa também pela língua portuguesa.
O resumo é fácil: dois soldados senegaleses que combatem sob a bandeira francesa participam num ataque contra o exército alemão durante a Grande Guerra. É de manhã e a morte vai tomar conta de um deles mal abandona a trincheira; ao outro, cabe recordá-lo e à guerra, mas não só, pois não é mais o mesmo homem que sai desse momento. Enquanto está na retaguarda, lembra-se de episódios que o enlouqueceram após ter perdido o amigo na frente de batalha e da violência que espalhou enquanto lhe foi possível.
Não é apenas o título do livro que surpreende, o monólogo também, já definido como dotado de uma leitura de textos bíblicos, bem como da descrição perfeita da colonização e do horror da guerra, tudo isto sob uma narrativa tão brutal que foi considerada surreal. O capítulo XII é um bom exemplo, aquele em que aguarda que os inimigos entrincheirados acabem de cantar durante uma pausa
David Diop
Editora Relógio d'Água
121 páginas