Para o Ferreira Fernandes.Ao minuto quarenta do filme Velocidade Furiosa, de 2001, várias personagens fazem algo inesperado num filme chamado Velocidade Furiosa: estacionam calmamente as suas viaturas e organizam um churrasco em família. Quando há coisas a arder nesse Velocidade Furiosa ou nos sete Velocidades Furiosas que se seguiram, as coisas a arder costumam ser carros, aviões ou edifícios, não os ingredientes de uma grelhada mista; mas o churrasco em família tornou-se um elemento recorrente na série tão importante como asfalto ou borracha. Nessa sessão inaugural, quando finalmente se sentam à mesa, o patriarca exige uma oração, e a exigência é correspondida. "Espírito celeste", recita um dos primos honorários, de olhos cerrados e dedos entrelaçados, "obrigado por nos teres abençoado com... injecção directa de óxido nitroso... sistemas de arrefecimento de quatro núcleos e... válvulas de titânio". Ámen..Os oito filmes podem ser vistos em qualquer altura e em qualquer plataforma. Se ligarem a televisão neste momento, algum canal estará a transmitir um deles. Se abrirem um armário da cozinha de repente, lá dentro estará uma das sequelas. Excluindo algumas curtas-metragens e um recente desvio não canónico, a sequência pode também ser vista em apenas quinze horas e cinquenta e quatro minutos, como o autor do presente texto concluiu nesta semana através do método empírico. Quinze horas e cinquenta e quatro minutos é apenas ligeiramente mais tempo do que demoraria a rever na íntegra todos os jogos de Portugal no Euro 2016, e um pouco menos do que demoraria a ver uma temporada inteira de uma série medíocre de 20 episódios. Existem, em suma, outras maneiras de desperdiçar quinze horas e cinquenta e quatro minutos numa semana, mas nem todas essas maneiras serão objectivamente "melhores"..Esta racionalização contabilística sobre tempo, já agora, seria logo identificada como absurda no universo de Velocidade Furiosa, em que a única regra estável é que nunca há tempo suficiente. O tema dos oito filmes é a obrigação natural de chegar do ponto A ao ponto B o mais depressa possível, resolvendo assim o problema da falta de tempo. Em nenhum momento dos oito filmes há um período maior do que seis minutos em que ninguém esteja a guiar um carro muito depressa. Porquê? Porque não há tempo para isso: é preciso guiar segurando o volante com uma mão e um walkie-talkie com a outra. Do walkie-talkie ouve-se instruções como "vira à esquerda!", às quais é necessário responder com "OK!". Por vezes não há sequer tempo para abrir manualmente a janela do carro, razão pela qual, quando precisa de abrir a janela, Vin Diesel prefere estilhaçar o vidro com o cotovelo. Noutras alturas, o carro não anda suficientemente depressa, o que obriga as personagens a gritar "preciso de NOS!" "NOS" é a substância alquímica que torna a velocidade extremamente veloz, mas que ao espectador português remete para uma infeliz associação fonética com uma operadora de telecomunicações. (Seria como rever o Super-Homem e descobrir que o material extraplanetário que o torna vulnerável, em vez de kryptonite, se chamava Telecel.).Com um enredo frontalmente decalcado de Point Break, o primeiro filme é, apesar de estreado em 2001, o último artefacto cultural dos anos 1990, um tempo mais inocente em que as franchises cinematográficas ainda não tinham ascendido à condição de universos paralelos, em que um filme de acção não tinha obrigatoriamente de comentar questões de poder, terrorismo e hegemonia americana com uma cena passada numa comissão de inquérito do Congresso, e em que uma banda sonora podia exibir triunfantemente as palavras "Limp Bizkit". Velocidade Furiosa era um filme sobre carros que andavam muito depressa e sobre a unidade biológica ad hoc formada pelas pessoas que os faziam andar muito depressa..A escala foi aumentando de filme para filme, absorvendo predecessores, influências e semiplágios à velocidade da NOS, mas julgar os resultados finais segundo quaisquer critérios de "originalidade" é compreender erradamente a sua natureza fundamental. O quinto filme é basicamente um Ocean's 11 - mas com mais carros. O sexto é uma variação Die Hard/Missão Impossível sobre a fórmula precisamos-de-travar-este-terrorista-perigoso - mas com mais carros. Todos se passam num mundo estruturado não por hierarquias, sistemas ou obrigações institucionais, mas por respostas automáticas e contingências pessoais. A dada altura, no sexto volume da optologia, toda a cadeia de comando hierárquica da NATO - e, por inerência, a segurança da civilização ocidental - é subordinada ao facto de um membro da família estar em risco. Esse risco é tudo o que é preciso para que um membro das forças da autoridade aponte uma arma à cabeça de um general, ganhando tempo para outros membros da família se enfiarem em carros. Cada impasse narrativo é reduzido a uma pergunta teórica num exame de Física, em que a resposta é sempre a mesma: carros+velocidade+família=exactamente!.O aumento da escala foi devidamento sinalizado pela introdução de Dwayne Johnson, The Rock, que acode ao quinto filme para demonstrar por comparação que Vin Diesel, afinal, não é assim tão grande, nem tão forte, nem tão careca. The Rock tem direito a algumas das melhores deixas da série inteira, como quando se prepara para reunir uma equipa de criminosos para capturar outra equipa de criminosos e explica a lógica do processo nos seguintes termos: "Para apanharmos lobos, precisamos de lobos. Vamos caçar alguns." E é precisamente isso que ele faz: vai caçar alguns lobos de forma que esses lobos o ajudem a caçar os lobos que não poderia caçar sem a ajuda dos lobos que entretanto caçou. Noutra cena, The Rock também ilustra o princípio operativo do seu universo. Um militar com coração burocrata examina uma pasta repleta de documentos importantes e abana tristemente a cabeça: "Isto não faz qualquer sentido." The Rock reage - "Sabes o que é que faz sentido? Isto" - e arremessa a pasta pelo ar. Quando se atira uma coisa pelo ar, seja essa coisa uma resma de papéis, um carro ou um avião Antonov AN-225, o "sentido" parece subitamente muito menos importante do que quando as mesmas coisas estavam sossegadinhas no chão..Velocidade Furiosa sobreviveu a mortes fictícias e reais, e encaminha-se para o nono volume, que algumas vozes cautelosas sugerem ser o penúltimo. A ideia de terminar franchises extravagantemente bem-sucedidas é tão rara que o gesto quase parece corajoso, mas a verdadeira coragem seria levar a lógica secundária dos filmes à sua conclusão extrema: permitir que o seu universo se prolongasse até à terceira idade, não apenas biologicamente na figura dos protagonistas (como fizeram as mais recentes iterações de Rocky ou Indiana Jones), mas narrativamente..Quão agradável é imaginar uma quinquagésima sequela já no fim do século, com hologramas de Vin Diesel e Paul Walker com mantinhas pelos joelhos, a fazerem corridas de cadeiras de rodas num centro comercial suburbano, rodeados de bisnetos aos gritos. O enredo poderia ser sobre a urgência de chegar a casa antes da hora dos comprimidos nocturnos. A oração antes do churrasco, um sincero agradecimento ao espírito celeste por todas as coisas que fazem o tempo passar mais devagar.