Vacinação Plano B: Um por todos e todos por um
Na sequência de ensaios clínicos e de uma avaliação rigorosa e semelhante à das outras vacinas e medicamentos que usamos todos os dias, a Agência Europeia de Medicamentos começou por aprovar uma vacina contra a Covid-19, a ComiRNAty, da BioNTech/Pfizer, que demonstrou, segundo a DGS, uma eficácia de 95% e, subsequentemente, a 6 de Jameiro de 2020, a Comissão Europeia anunciou que também a vacina mRNA-1273, da Moderna havia sido aprovada.
O processo de vacinação irá decorrer na União Europeia ao longo de 2021 de acordo com um plano que permitirá não só a protecção individual contra a doença mas contribuirá, também, para a protecção da saúde pública através da imunidade de grupo.
As estimativas variam, mas em princípio será necessário que entre 60 a 70% da população- esteja imunizada para se atingir imunidade de grupo - só então o vírus, não se encontrando extinto, tem todavia mais dificuldade em se propagar e em manter cadeias de transmissão.
Ou seja: é imperativo que uma proporção significativa da população seja vacinada para garantir a eficácia da vacina contra a Covid-19, para protecção do indivíduo e da comunidade, permitindo a resolução progressiva do profundo impacto social e económico da pandemia.
Como tal, é crucial promover a vacinação, sendo que a estratégia aconselhada pela OMS consiste na recomendação da vacinação (não na imposição de obrigatoriedade), a par de uma campanha de informação no que toca à segurança, eficácia e benefícios da vacina e da expectativa de que se entenda que o acto de vacinação resulta da ética e da responsabilidade social.
O êxito dessa estratégia dependerá da capacidade de combate do chamado síndroma de hesitação vacinal que, segundo a mesma, OMS se prende com um atraso na aceitação ou recusa de vacinas e que explicará o facto de que à data de hoje eventualmente mais de 30% a 40% da população comunitária não tencione ser vacinada, em 2021, contra a Covid-19 - tal podendo obstar à criação de imunidade de grupo no seio da União Europeia.
Se o fornecimento de informação, com transparência, e o apelo à ética e à responsabilidade social não chegarem, os Estados Membros podem ter de recorrer a outras estratégias de promoção da vacinação como (i) incentivos económicos, fiscais ou outros (exemplo: prioridade no acesso a tratamentos médicos e cirúrgicos fornecidos pelo SNS) (ii) negação de benefícios e/ou serviços aos indivíduos não vacinados e (iii) vacinação obrigatória.
A hipótese mais controversa assenta na obrigatoriedade da vacinação e uma vez que a vacinação não é alvo de política comum pela União Europeia fora (há Estados Membros que não têm nenhuma vacina obrigatória e Estados Membros que têm pelo menos uma vacina obrigatória) cada Estado Membro terá, de determinar o que fazer em função de considerações e argumentos de foro ético e jurídico.
Os defensores da obrigatoriedade do processo de vacinação têm invocado outros exemplos de obrigatoriedade gerados em nome de um bem maior, nomeadamente:
- O uso obrigatório de cintos de segurança - Argumento: A vacina é como um cinto de segurança contra a Covid-19, cinto esse que protege o indivíduo e a sociedade no seu todo;
- O pagamento obrigatório de impostos - Argumento: A vacina é como um imposto, uma contribuição feita em nome do bem comum; e
- A obrigatoriedade do confinamento - Argumento: A vacina tem menos custos sociais, psicológicos e económicos do que o distanciamento físico obrigatório e o isolamento social. A vacina visa um bem maior, com um custo menor.
Seja como for, em termos éticos, a vacinação só fará sentido, à laia de Plano B:
- Se permanecermos perante uma grave ameaça à saúde pública;
- Continuando a haver provas de que a vacina é segura e eficaz, no âmbito da vigilância implementada pela autoridade nacional de regulação dos medicamentos, isto é, o INFARMED;
e
- Se os benefícios advenientes da obrigatoriedade de vacinação para a sociedade (a criação da imunidade de grupo, o decréscimo de contágio e de óbitos, etc.) sobrelevarem a liberdade do indivíduo.
Sob uma perspectiva jurídica, a Constituição Portuguesa não vedava e continua a não vedar a obrigatoriedade da vacina, desde que a lei que tal estabelece tenha aval parlamentar - tanto assim que resulta do Decreto-lei 44198, de 20 de Fevereiro, o regime de obrigatoriedade da vacinação antidiftérica e antitetânica.
Com efeito, a nível constitucional estão designadamente em causa o direito à integridade pessoal (artigo 25) e o direito à protecção da saúde (artigo 64), havendo que ter em consideração que:
- o direito à integridade pessoal não obsta à vacinação obrigatória desde que o incumprimento não acarrete a vacinação forçada - não impedindo, no entanto, a aplicação de uma multa, a restrição de acesso a serviços ou funções públicas ou a frequência de determinados locais, etc. - e
- o direito à protecção da saúde confere ao Estado um dever de a promover e defender.
E em caso de conflito de direitos há que dar primazia ao direito que defende o bem maior.
Foi essa a conclusão a que chegou, em Dezembro de 2020, o Supremo Tribunal Federal do Brasil, que decidiu que quando legitimamente justificada por uma necessidade de saúde pública, a obrigatoriedade da vacinação se sobrepõe à objecção do indivíduo.
O Tribunal acentuou que a ortodoxia actual, segundo a qual vacinação obrigatória cruza uma linha ética que não é cruzada pela quarentena, deve ser desafiada, ressalvando, não obstante, que há que construir excepções para os indivíduos susceptíveis de sofrer efeitos colaterais e, talvez, para os que tenham fortes objecções morais,
Uma coisa é certa, enquanto a vacina contra a Covid 19 for decisiva para a protecção da saúde pública e, consequentemente, para o restabelecimento de direitos e liberdades fundamentais, que permitem, entre outras coisas, circulação, trabalho e lazer, parece justo que a responsabilidade pela obtenção da imunidade de grupo seja partilhada por todos. É mesmo caso para dizer um por todos e todos por um.
De tal forma que, em termos jurídicos, se a ausência de vacinação levar à contaminação de terceiros, daí pode decorrer inter alia responsabilidade criminal, pois decorre do artigo 283 do Código Penal Português que quem propagar doença contagiosa e assim criar perigo para a vida ou perigo grave para a integridade física de outrem pode ser punido com pena de prisão de 1 a 8 anos.
Lembremos que se todas as dúvidas são legítimas, o dever de as esclarecer junto de fontes fidedignas e a humildade de desafiar os preconceitos mais enraizados são mandatários.
Patricia Akester: Fundadora do Gabinete de Propriedade Intelectual/Intellectual Property Office (GPI/IPO) e Associate, CIPIL, University of Cambridge
Filipe Froes: Pneumologista, Consultor da DGS, Coordenador do Gabinete de Crise COVID-19 da Ordem dos Médicos, Membro do Conselho Nacional de Saúde Pública
Escrevem segundo a antiga ortografia