Vacinação em simultâneo para gripe e covid baralha utentes e dificulta ação de profissionais

As dificuldades que médicos e enfermeiros apontam no processo de vacinação são transversais ao país: há centros que têm gente a mais para vacinar e poucos profissionais, outros que programam os dias para vacinar entre 400 pessoas e aparecem 250. A faixa acima dos 80 anos não responde ao SMS e procura ajuda nos centros de saúde.
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Na terça-feira, a filha de Maria Antónia, de 82 anos, levou-a ao centro de vacinação do Estádio Universitário, em Lisboa, para que esta fosse vacinada com o reforço para a covid-19 e contra a gripe, tal como tinha sido marcado por SMS, e aceite por elas. Como tinha marcação, a filha pediu apenas duas horas no trabalho para ajudar a mãe a executar esta tarefa, mas acabou por levar mais de quatro até que a pode levar de regresso a casa. Segundo contou ao DN, "o centro de vacinação estava cheio de idosos, como a minha mãe, mas também de jovens, que percebi que tinham feito os 12 anos e iam ser vacinados pela primeira vez e ainda com pessoas que tinham sido infetadas e que iam receber a única dose".

A filha de Maria Antónia não se queixa tanto do tempo que perdeu, porque, diz, "percebia-se que havia poucos profissionais para tanta gente. Era uma confusão, mas podiam dar alguma informação a quem ali estava. Se havia gente a mais, reagendavam".

A questão é que a marcação é feita pelos serviços centrais, quem está nos centros de vacinação não pode remarcar as pessoas, e, neste momento, tanto os jovens que completam os 12 anos como os infetados que têm de levar a dose única podem aparecer sem agendar, ao abrigo da modalidade "casa aberta". E, depois, confirmou ao DN fonte da área da enfermagem nesta região, "quando temos pessoas a mais tentamos resolver a situação, mas não é fácil gerir as sensibilidades. Refilam connosco e uns com os outros. Mas se há dias que temos pessoas a mais, outros temos a menos, porque faltam às convocatórias".

A mesma fonte não considera que o processo esteja atrasado ou que algo tenha mudado com o fim da task force, porque "quem está a gerir os centros de vacinação, são as mesmas pessoas. O que se passa é que agora temos de fazer a vacina de reforço contra a covid-19, muitas vezes em simultâneo com a da gripe, outras vezes só a da gripe, porque há quem ainda não tenha completado os seis meses após as duas tomas. Este sistema ainda faz muita confusão às pessoas. Se calhar, a mensagem não tem passado, porque há quem não queria apanhar as duas ao mesmo tempo, acha que faz mal. Depois, há dias em que damos só o reforço, porque não temos para a gripe, e as pessoas não percebem porque têm de voltar para apanhar a da gripe".

Segundo contaram ao DN, na região da Grande Lisboa os dias têm sido complicados para os profissionais que se mantém nos centros de vacinação. Na região do Grande Porto, fontes da área da enfermagem nãos e queixam tanto, argumentando que "uma das grandes dificuldades é o planearmos o nosso trabalho para vacinar entre 300 a 400 pessoas por dia com reforço para a covid e contra gripe e depois só aparecerem 250 ou 280 pessoas". A mesma fonte diz que o sistema de marcação por SMS é confuso para os maiores de 80, "muitas são convocadas e não respondem porque não sabem, precisam de uma segunda pessoa, que, por vezes, também não sabe, e quem está nos centros não os pode ajudar".

Este profissional de enfermagem do Norte refere ainda que no centro onde está a desempenhar funções "está a convocar-se pessoas acima dos 80 anos que estão em casa, mas acamadas. E não comparecem. Na primeira fase da vacinação fizemos muitos domicílios, agora ainda não estamos a fazer".

Por outro lado, "temos de tentar conjugar as duas vacinações, gripe e covid. A norma da DGS refere que o reforço contra a covid é para quem tem mais de 80 anos, mas para quem já fez seis meses após a segunda toma e ainda há muitas pessoas que não estão nessa situação, embora já possam ser vacinadas contra a gripe. Temos de estar sempre a avaliar os intervalos que existem e ver se é possível aguardar para depois se dar as duas vacinas em simultâneo".

Os dois profissionais de enfermagem, embora de regiões distintas, consideram que o processo não está assim tão atrasado - embora, e como o DN noticiou na sua edição de ontem, neste momento haja apenas 315 mil pessoas vacinadas contra a covid, quando já deveriam estar quase 500 mil para se cumprir a meta de a meio de dezembro o processo estar concluído. Ambos concordam mais que as complicações que surgem no dia a dia são motivadas pelo sistema e pela idade dos utentes.

Para o presidente da Associação Portuguesa de Medicina Geral e Familiar (APMGF), Nuno Jacinto, uma das grandes dificuldades deste processo de vacinação em simultâneo "tem a ver com a falta de vacinas contra a gripe, o que é uma situação incontornável. As vacinas que temos ainda são claramente insuficientes para o que se pretendia. Neste momento, temos uma taxa de vacinados contra a gripe que não deve passar os 25%, mas esperamos que durante este mês este problema fique resolvido".

A outra dificuldade, admite, é mesmo "o sistema que foi montado para esta vacinação em simultâneo". Ou seja, explica, "na primeira fase da vacinação contra o SARS COV-2 já tínhamos percebido que o sistema de marcação por SMS não funcionou com a faixa etária com que estamos a lidar agora, acima dos 80 anos. As pessoas até podem ter um número de telemóvel na ficha do centro de saúde, mas depois não percebem como responder ao SMS e vão aos centros de saúde pedir ajuda, ou então nem respondem".

O médico sublinha que, "mais uma vez, são os profissionais dos cuidados primários que têm de ajudar os utentes a resolver estes problemas e enquanto estamos a fazer isto e a vacinar, não estamos a desempenhar outras tarefas". Além do mais, "é uma sobrecarga em relação a tudo o que têm para fazer".

Segundo conta Nuno Jacinto, são os profissionais dos cuidados primários que, muitas vezes, têm de contactar os colegas dos centros de vacinação para poderem ajudar os utentes, mas nem sempre "conseguimos, porque não podemos dizer ao utente ficou remarcado para o dia tal. O agendamento é feito a nível central".

E depois há ainda todo o trabalho de contactar as pessoas que não aparecem. "A vacinação da gripe sempre foi nossa e é uma preocupação. Temos de proteger as pessoas o mais depressa possível, só que desde o início do ano que estamos em processo de vacinação e o termos de fazer agora em simultâneo com o reforço contra a covid não ajuda".

Ao fim de ano e meio de pandemia, o médico diz que "o eterno problema da pandemia é que continuamos a sacrificar os profissionais dos centros de saúde, desviando-os para outras tarefas em vez de estarem a fazer o que deviam".

O presidente da APMGF concorda que a vacinação da gripe até podia ficar nos centros de saúde, "sempre foi uma altura critica para nós e já sabemos o que fazer", agora a vacinação de reforço, e tal como defenderam durante tanto tempo, se calhar não deveria estar a cargo dos profissionais dos cuidados primários, porque "já sabemos que em unidades com falta de recursos as situações de sobrecarga de trabalho agravam-se".

Ao mesmo tempo reconhece que uma das grandes preocupações "é vacinar a população de risco o mais rápido possível contra a gripe, porque esta também mata", e que em relação à covid "já não estamos em confinamento e arriscamos a ter mais casos". Nuno Jacinto diz ainda não considerar haver regiões com mais ou menos dificuldades neste processo, porque "os problemas são transversais".

Em entrevista ao DN, há duas semanas, a diretora-geral da Saúde, Graça Freitas, disse acreditar que, até meio de dezembro, a proteção dos mais vulneráveis estará completa contra a gripe e contra a covid.

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