Há um momento, perto do final de O Feiticeiro de Oz (1939), em que o mago diz ao sentimental Homem de Lata: "Um coração não é julgado por quanto ama, mas por quanto é amado pelos outros." Por essa altura do filme a pequena Dorothy está quase a regressar a casa, no Kansas ("there"s no place like home..."), e as palavras do Feiticeiro, que não lhe eram dirigidas no guião, ficam a fermentar um sentido oculto que só no futuro longínquo, depois de tudo o que Judy Garland viveu, podemos recuperar à luz de outras palavras da atriz: "Sempre tive um tremendo desejo de agradar." É verdade que esse desejo a torturou em todas as fases da vida, mas se há estrela clássica que agradou vastas audiências foi ela - a julgar pelo quanto foi amada por todos aqueles que a viram crescer na grande tela e no palco, é caso para dizer que o seu foi um coração de ouro, tal como o do Homem de Lata. Mas um coração tomado por uma angústia disfarçada, em plena era dourada do cinema americano..Não há metáfora melhor do que O Feiticeiro de Oz, precisamente, para falar do início da carreira de Garland. Ao cantar o mítico Over the Rainbow e pisar essa terra mágica com uns cintilantes sapatinhos vermelhos, a atriz inscreveu o seu nome no firmamento de Hollywood, tornando-se um ícone instantâneo de apelo universal. Tinha 17 anos. Mas antes do papel de Dorothy - que a princípio os produtores queriam que fosse dado a uma criança - ela já vinha a consolidar uma notória presença na indústria cinematográfica. Foi contratada em 1935 pela Metro-Goldwyn-Mayer (MGM) e, com apenas uma curta-metragem no currículo (Every Sunday), despertou as atenções de toda a gente quando cantou no aniversário de Clark Gable o tema You Made Me Love You, escrito pelo compositor Roger Edens. O brilharete foi tal que a produtora decidiu incluir o número no filme Maravilhas de 1938 (1937), seguindo-se a experiência da famosa parceria no grande ecrã com Mickey Rooney em Nasceu um Gentleman (1937), que se estendeu por mais uma mão cheia de comédias musicais em que ambos faziam invariavelmente de par romântico..Frances Ethel Gumm era o seu nome de batismo. Filha de dois atores de teatro de Grand Rapids, Minnesota, estreou-se nos palcos, com 2 anos e meio, a cantar canções de Natal. Aos 10 escolheu o nome que a celebrizou. Num abrir e fechar de olhos, a mãe, Ethel Marion Milne, percebeu que o talento da filha poderia dar frutos numa altura em que Hollywood escancarava as portas para castings de crianças-prodígio (como Shirley Temple), e seguiu os passos todos para a levar até à linha da frente. Contudo, ao longo do tempo a relação das duas ficou marcada por uma certa obscuridade: a mãe estava ali para assegurar que, fora da amplitude do ecrã, os hábitos de vida escrupulosamente vigiados lhe mantinham a boa imagem da adolescente americana, controlada sobretudo à base de anfetaminas e comprimidos para dormir e manter a linha, sacrificando-se o que quer que fosse em nome do trabalho (inclusive, a atriz foi levada a abortar na gravidez do primeiro casamento). Garland dizia que ela era a verdadeira Bruxa Malvada do Oeste....Assim, entre a mãe e a MGM gerou-se, desde o início, um acordo tácito de manter dentro da disciplina rígida aquela que se tornou numa das mais bem pagas estrelas de Hollywood - com um contrato que exigia um mínimo de dois filmes por ano. Só quando Vincente Minnelli, seu futuro marido (o segundo), surgiu no panorama é que se vislumbrou uma esperança de inverter esta escalada de exploração física e psicológica da atriz. Conheceram-se na rodagem de Não Há Como a Nossa Casa (1944), esse magnífico e terno musical em que Garland canta como ninguém Have Yourself a Merry Little Christmas num dos planos mais imaculados do seu rosto no cinema, mas foi depois de A Hora da Saudade (1945), o único não-musical que fez para a MGM, igualmente assinado por Minnelli, que selou votos com o cineasta. Nesse belíssimo filme, ela contracena com Robert Walker, como soldado, numa comovente história de amor enquadrada por uma corrida contra o tempo (48 horas) em Nova Iorque..E o tempo também voou para Judy Garland. A jovem mulher que cantava, dançava e representava com um misto de fragilidade e segurança, sensibilidade e força, foi deixando de suportar o peso da imagem de eterna inocência. Quem se cruzou com ela em passos de coreografia - como o referido Mickey Rooney, Gene Kelly (O Prémio do Teu Amor, O Pirata dos Meus Sonhos...) ou Fred Astaire (Quando Danço Contigo) - testemunhou a facilidade de trabalhar com uma extraordinária performer. Mas por trás desse arco-íris de felicidade hollywoodesca estava sempre a pressão do excessivo ritmo de filmagens que, mesmo depois do casamento com Minnelli e do nascimento de Liza, não abrandou. Um dia a deterioração prolongada da sua saúde manifestou-se e a corda rebentou. Foi dispensada pelos estúdios em 1949. Voltou para fazer o filme Festa no Campo (1950), com uns quilinhos a mais depois de tratamentos médicos, e foi novamente despedida por já não corresponder ao padrão de beleza exigido às glamorosas estrelas da indústria..O triunfo amargo.O explosivo comeback, depois de quatro anos de afastamento, ficou para a história como o papel da sua vida. Em todos os sentidos. Assim Nasce Uma Estrela (1954), realizado por um brilhante cineasta chamado George Cukor, foi a oportunidade de Garland repor a verdade sobre a violência de se ser uma star na "terra dos sonhos". Nesse filme, ela é, ao mesmo tempo, a sua personagem em ascensão, Vicki Lester, e a personagem em queda de James Mason/Norman Maine (The Man That Got Away, como ela canta), que numa cena tragicamente degradante interrompe a cerimónia dos Óscares em que Vicki recebe uma estatueta para pedir trabalho à audiência de gente da indústria - quem viu o recente remake de Bradley Cooper com Lady Gaga terá fresco na memória uma cena semelhante..Este foi o filme que o seu terceiro marido, Sidney Luft, um empresário do show business, viu como oportunidade para Garland fazer a sua própria psicanálise. E o embate revelou-se demasiado forte: por exemplo, no momento em que vemos Vicki Lester no camarim a borrar a maquilhagem à medida que desabafa o facto de não ser capaz de salvar Norman Maine da depressão e do alcoolismo ("o amor não chega", diz ela), já não estamos a ver Lester mas sim Judy Garland a combater os seus fantasmas, a sentir genuinamente a dor que oferece à câmara... Logo depois levanta-se e volta para a rodagem com o mais rasgado dos sorrisos..Terminado o episódio isolado de Assim Nasce Uma Estrela, só nos anos 1960 é que voltou ao cinema em três ou quatro interpretações. Alcançou a sua segunda nomeação para o Óscar num excelente papel secundário em O Julgamento de Nuremberga (1961), de Stanley Kramer, contracenou com Burt Lancaster em A Child Is Waiting (1963), de John Cassavetes, e, no mesmo ano, naquele que será o seu derradeiro filme, Triunfo Amargo - com o título original da canção a que dá voz, I Could Go on Singing - a camada autobiográfica volta a pesar no semblante da personagem. Aqui ela é uma muito bem-sucedida cantora de meia-idade a tentar reatar o contacto com o filho que abandonou em prol da carreira. E no olhar triste e carregado que lhe marca a expressão podemos ver, apesar disso, o seu "tremendo desejo de agradar". É o que ela faz o tempo todo, buscando as emoções no palco. Já na vida real, foi também ao palco que regressou para uma série de concertos pelo mundo, com salas cheias e fervorosas, que terminou no Carnegie Hall. Ainda era amada pelas audiências..Judy Garland morreu a 22 de junho de 1969, poucas semanas antes da chegada do Homem à Lua. Ela que na ficção tinha chegado ao outro lado do arco-íris. Contava 47 anos e a autópsia dizia "sobredosagem acidental de barbitúricos". A sua memória será agora recuperada num biopic assinado por Rupert Goold e protagonizado por Renée Zellweger: Judy acompanha os concertos que deu em Londres no inverno de 1968, e chega às salas portuguesas a 10 de outubro.