Uma viagem visual pela vida e pelos mitos por Margaret Atwood
"Só escrevemos sobre o nosso tempo." Margaret Atwood, a escritora canadiana autora de The Handmaid's Tale, diz que "não temos escolha". Não sabemos o que vai ser o futuro e podemos fingir ser do século XIV "mas não vamos ser do século XIV". A reconhecida e multifacetada autora de 78 anos falava sobre o sentido do tempo na conversa com o moderador Gareth Evans sob o tema Mitos na Minha Obra, integrada no Fórum do Futuro, série de encontros que decorrem no Teatro Rivoli, no Porto. A sala estava praticamente lotada, com muita juventude na plateia.
Para exemplificar que um escritor não consegue viver outros tempos, Atwood comentou que "Ivanhoe tenta ser do tempo medieval mas é do século XIX e Um Conto de Duas Cidades de Charles Dickens passa pela Revolução Francesa mas é do século XIX." E insistiu que "na verdade não temos escolha. Se pensarmos que estamos a escrever sobre o futuro, vamos estar errados."
Para uma escritora que já revisitou o mito clássico e escreveu novelas distópicas como The Handmaid's Tale, com ação num futuro próximo, Atwood transmitiu muito desta ideia ao longo da sua comunicação descontraída, pontuada com muita ironia e piadas. Na sequência desta perceção do tempo, recordou a primeira edição da sua obra mais popular, em 1985. O ano para a edição de uma distopia era perfeito e Atwood é uma admiradora de George Orwell, mas "tinha a capa mais pirosa" essa primeira produção que foi publicada. "Era a época", conforma-se e acaba por ir a exemplos de equipamentos que não existiam naquela altura.
O vestido vermelho que domina visualmente The Handmaids Tale esteve sempre muito presente com Atwood a explicar, após questão do público, que teve inspiração em freiras medievais, com a cor vermelha a vir da iconografia cristã e de Maria Madalena, apesar de uma "assustadora" imagem de uma mulher "com um vestido azul muito volumoso" estampada numa embalagem de detergente dos anos 1940, a Old Dutch Cleanser, ter influenciado a escolha. O vestido da mulher tinha uma espécie de capuz ou chapéu que cobria a cara. "Para olhar para ela tinha que se estar de frente, olhar mesmo nos olhos."
A conversa, mesmo quando chegou ao público, nunca entrou em temas políticos da atualidade, depois da sua obra e em especial The Handmaid's Tale ter sido adotado como símbolo nos EUA perante as ameaças de um fundamentalismo pós-Trump, adequado à sociedade totalitária e misógina que a novela retrata. Margaret Atwood ainda respondeu sobre o segredo do Canadá para gerar talentos, muitos femininos como Joni Mitchell, ao fazer uma comparação com a realidade norte-americana em meados dos século passado. "No Canadá, nunca ninguém me disse para não ser escritora. Nos Estados Unidos descobri mulheres que achavam isso ser muito corajoso."
Antes, a escritora canadiana de 78 anos optou por uma comunicação em que revisitou a sua infância, sempre divertida, em que cedo avisou que iria falar com a ajuda de imagens, apesar de "odiar o power point". Entre ilustrações e fotografias de família, Atwood percorreu a sua vida e parte da sua extensa obra, com 60 livros já publicados, entre romances, poesia, ilustração, ensaios, literatura infantil. "Quando tinha 12 anos queria ser pintora, não uma escritora." Logo exibiu um auto-retrato feito em 1975, momento para falar do seu fascínio por criaturas híbridas, como sereias ou lobisomens, objetos de ilustrações suas, especialmente quando queria "divertir a irmã mais nova" ou mais tarde para publicações. A capa do primeiro livro publicado Double Persephone, datada de 1961, surgiu antes de percorrer a história familiar em fotografias. Da mãe, uma "maria rapaz que gostava de andar a cavalo", do pai, um entomologista florestal que construía tudo o que família tinha, nem havia eletricidade. Numa abordagem de comentário às imagens, a escritora falou muito do irmão mais velho, que gostava de brincar com cobras, um biólogo que na adolescência desenhava heróis clássicos, "muito influenciadores".
A passagem, com saltos, do tempo foi sempre uma linha nos comentários, com várias fotos da própria oradora, como uma em Berlim, tirada em 1984, ano em que concluiu The Handmaid's Tale e pelo percurso de dezenas de ilustrações da sua obra, com foco nas mais ligadas à mitologia clássica. Atwood, que leu várias obras como a Odisseia ou a Ilíada ainda no liceu, considerou ser fundamental para um escritor conhecer a mitologia.
Elogiou ainda como escritores da atualidade que admira. Naomi Alderman, Neil Gaiman e Paolo Gaculapi, este com obras muito marcadas pelo futuro e pelas alterações climáticas, muito ao gosto de Atwood, ela própria uma ativista ambiental, foram nomes citados, num momento em que aproveitou para dizer que entre os seus filmes favoritos estão Blade Runner (1982) e o sueco Let The Right One In (2008) , de Thomas Alfredson, uma história de vampiros entre crianças. Acrescentou ainda The Brain Who Wouldn't Die (1962), um série B que não constará das preferências de críticos de cinema.
O Fórum do Futuro prossegue até amanhã, no Rivoli e na Casa da Música, tendo esta quinta edição como tema de fundo "Ágora Club", numa alusão à praça pública de debate, e uma reflexão "sobre o nosso tempo e principalmente sobre o futuro", a partir "da Antiguidade e da sua manifestação na cultura contemporânea".