Uma urgência íntima de contar as origens

<em>Desaparecida</em>, romance de estreia, valeu a Ricardo Lemos o prémio nacional de Literatura Lions de Portugal. Por ele passam milagres, embustes, aparições de almas do outro mundo, mas sobretudo o apelo da terra natal do autor, radicado em Londres.
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Os fantasmas tinham vida longa, estendiam-se pelos anos, apareciam em lobos marinhos que cantavam o marulho das ondas e em bestas que comiam nas manjedouras dos porcos." Assim, diziam os antigos, acontecia em Desaparecida e não é por ser "faz-de-conta que é razão para desacreditar." Se a procurarmos, Desaparecida não aparece no mapa de Portugal continental e insular mas Ricardo Lemos, 35 anos, 15 dos quais passados em Londres (onde ainda vive e trabalha) deu-lhe uma existência literária no romance que lhe valeu este ano o Prémio Nacional de Literatura Lions de Portugal e a publicação com a chancela da Guerra e Paz. "Desaparecida é pouco mais do que o monte de pedras sem nome que lhe apontaram em criança. Mais viva, só algumas casas estão em ruínas. A igreja ainda badala as horas. No sopé do penhasco da igreja, diante do cemitério, o lar está aberto, pintado de fresco e com uma nova ala em construção. A casa grande dos Gonzaga foi remodelada para acolher casais e turistas estrangeiros."

Tal inventividade conquistou o júri (presidido pelo jornalista João Céu e Silva e composto ainda pelo escritor João Nuno Azambuja, e pelos vencedores das últimas edições do prémio, José Martinho Gaspar, Evelina Gaspar e Lucinda Fonseca), que, na declaração de voto, afirmou: "O autor demonstrou a arte de contar histórias dentro da história, mesmo que algumas sejam inverosímeis, como o próprio refere no início. Integrando um vocabulário riquíssimo, esta obra é uma viagem pelo real e pelo imaginário, o que demonstra a sua riqueza, de onde nem o choque de culturas, de crenças e de utopias está apartado."

Ricardo Lemos, que já deu a volta a meio mundo, no seu imaginário regressa muitas vezes às histórias escutadas em noites sem lua, nas aldeias de origem dos pais, na região do Douro. Tantos ecos de superstições, milagres, embustes, aparições de almas do outro mundo que tomam as mais desconcertantes formas (como as das tais bestas que, a horas mortas, viriam comer nas manjedouras dos porcos) levaram-no a criar a aldeia fictícia de Desaparecida e a escrever sobre ela.

Tudo começou há anos, diz, com "a ideia de uma coleção de contos" quando ainda estava a frequentar o mestrado de Escrita Criativa, na Universidade de Cambridge (depois de se ter licenciado em Cinema): "Queria brincar um pouco com as minhas memórias de infância, com histórias que ouvi em miúdo, não tanto no Porto onde nasci e cresci, mas sobretudo quando ia às aldeias dos meus pais." E que histórias eram essas? "Ficava muito encantado com os relatos das avós sobre certas luzes inexplicáveis que se veem à noite ou sobre todo o tipo de fantasmas, animais possuídos, coisas estranhas que se metem em garrafas. Eu ouvia essas histórias sem acreditar totalmente, mas também sem desacreditar, de tal maneira me sentia fascinado."

O que começou por ser um projeto de livro de contos foi crescendo, até lhe surgir esta aldeia - e o formato de romance. Por aqui passam Fatimah, com agá à mourisca, como frisa, que conta e repete, "como se a vida toda coubesse no contar", Bartolomeu Vagamundo, pássaro feito gente, que escapa à Inquisição e embarca numa odisseia, e sua descendente, Maria, entre outras personagens de épocas diversas, que vão dando corpo a uma narrativa que acabou por se transformar em romance.

Por Desaparecida passa também o fascínio do autor pela História de Portugal, talvez mais forte, admite, desde que vive no estrangeiro. "Em pequeno gostava muito de ler a Peregrinação, de Fernão Mendes Pinto, agora quis ler outros relatos de viagem da expansão marítima portuguesa, mas não da perspetiva dos Gamas e Albuquerques ou dos grandes feitos, mas dos portugueses anónimos que se viram envolvidos nesse processo, às vezes com consequências muito nefastas para si próprios." E é assim que da leitura de obras que são quase anti-epopeias, como História Trágico Marítima; as Décadas da Ásia, de Diogo do Couto, ou Cartas do Tibete, do padre António de Andrade, lhe surgem personagens como Bartolomeu Vagamundo.

Estamos diante de uma obra pesada de erudição? Como nos dizia, aquando da atribuição do prémio, João Céu e Silva, esse conhecimento está lá, mas não pesa: "Ele consegue entrelaçar muito bem essa parte de história com as histórias que vai contando. As personagens são credíveis, não é comum na nossa literatura ver diálogos tão verossímeis. Lemos e parece que estamos a ouvir aquelas vozes a contar-nos a história. Não é artificial ou forçado." Dos 25 livros a concurso, Desaparecida impôs-se, ainda segundo a declaração de voto do júri, pela apresentação de "uma narrativa que reflete uma estrutura tão ampla como elaborada, dotada de inúmeras referências históricas a várias épocas e acontecimentos que surpreendem o leitor, além de utilizar múltiplos cenários geográficos, temporais, espirituais e sociais, que demonstram ser resultado de uma investigação que a distingue". João Céu e Silva não tem dúvidas em afirmar que este livro "é também um exemplo de como se constrói uma narrativa, sabendo manter o ritmo e criar personagens credíveis".

Para Ricardo, este regresso às origens passou logo pela íntima urgência de voltar a escrever na língua materna: "Escrever em português já me exigia algum esforço. Depois de 15 anos em Londres (embora venha a Portugal com frequência), começava a sentir-me mais à vontade em inglês, porque é a língua com que lido todos os dias, e senti necessidade de contrariar isso." Depois, foi "também a vontade de fixar um mundo cada vez mais em extinção, em que as noites muito escuras alimentam medos e superstições".

Grande viajante durante anos (chegou a ter uma coluna de viagens no JN), Ricardo andou por paragens tão díspares como os Estados Unidos ou o Tibete, onde, aos 20 anos, se viu a ensinar inglês a crianças. Com residência fixa em Londres, queixa-se de algumas das exigências burocráticas do Brexit para um cidadão comunitário, mas encontra algumas vantagens no novo sedentarismo que a pandemia lhe impôs. "Posso dizer que parei de viajar fisicamente, mas iniciei outro tipo de viagem, pelos textos e pelos livros. Voltei a coisas que já tinha escrito há muito e sobretudo retomei a leitura de outros autores."

Agora, de regresso a Portugal para as férias de Natal, sente que é aqui que mais se foca para escrever. "Desligo-me um bocado das tarefas profissionais que tenho em Londres e foco-me na escrita. Tem corrido bem, escrevo sempre muito quando volto aqui."

Para 2022 tem o objetivo de manter o ritmo de escrita, porque "sem isso sinto-me um pouco desligado de mim próprio e a criação necessita de método e trabalho diário, como se sabe." Só não tem ainda ideia precisa do que sucederá a este Desaparecida de auspiciosa carreira. "Estou a experimentar várias coisas. Comecei por estudar Cinema e tenho vontade de voltar a escrever para o ecrã. Mas o facto de ter esta maneira de pensar de forma mais visual creio que ajuda na minha escrita literária. As duas não se excluem, antes se contaminam entre si", admite. Ricardo também não sente que o sucesso de Desaparecida o tenha ancorado ao género fantástico: "O meu interesse nunca foi a fantasia só por si. Creio que posso avançar para histórias mais relacionadas com o real e talvez mais curtas, mas ainda estou à procura do que quero fazer." E formula um voto, já que estamos em época deles: "Espero ser ainda mais produtivo em 2022 e que isso resulte também de uma maior abertura da sociedade."

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