O abuso e a revolta no Portugal perdido dos anos 1950 no Alentejo é o ponto de partida para Raiva, adaptação austera de Sérgio Tréfaut ao clássico Seara de Vento, de Manuel da Fonseca, uma das obras fundamentais da literatura portuguesa do século XX, aqui captada num preto e branco vistoso do diretor de fotografia Acácio de Almeida..Este conto de vingança que narra uma noite de um crime numa casa senhorial é uma tragédia portuguesa que teve a sua estreia no último IndieLisboa. No seu elenco, encontramos Hugo Bentes, um não ator que interpreta o protagonista, um homem que explode no momento em que perde a dignidade. Um protagonista improvável numa história com um elenco coral em que cabem Leonor Silveira, Catarina Wallenstein, Diogo Dória, Sergi López, Herman José, Isabel Ruth e Luís Miguel Cintra. Mas a grande revelação é mesmo Rita Cabaço, a jovem atriz lisboeta que tem vencido prémios em teatro e é considerada pela imprensa uma verdadeira descoberta..Entre uma folga do espetáculo que tem em cena em Almada, no Teatro Joaquim Benite, A Boa Alma de Sé-Chuão, a partir de Brecht, e a preparação de um novo projeto em cinema com a cineasta Francisca Manuel, a atriz que está também no elenco da nova série de Fernando Vendrell, 3 Mulheres, conta-nos o que ganhou na sua arte com esta estreia em cinema: "Ganhei uma agilidade para responder na hora. No teatro, com os ensaios, há mais tempo. No cinema, temos de nos adaptar a questões mais práticas e técnicas, como a luz." Uma agilidade que a convenceu: vamos ter mais Rita Cabaço no cinema, apesar de ter ficado convencida de que nunca um ator pode conduzir um filme..Estrear-se com Sérgio Tréfaut foi também um golpe de sorte, garante: "Ele é muito atento e fiquei a confiar muito nele. Creio que teve uma atenção muito especial na parte da representação, senti que também confiava muito em mim e que se estabeleceu um diálogo muito justo entre nós. Também tive sorte em encontrar aquela equipa técnica, eles eram todos extraordinários. Tornaram tudo leve, apesar de a história e as personagens convocarem austeridade. Aquele peso só surgia quando íamos filmar, e esse peso o Sérgio pedia-nos. A minha rapariga é alguém com apenas 19 anos mas já com uma carga e uma responsabilidade sobre os ombros. Não poderia ser uma adolescente leve... Ela tem muito sofrimento e vontade de mudar alguma coisa. O preto & branco e os décors também ajudam a que o filme ganhe todo esse peso. ".Rita Cabaço traz a força que conhecíamos do palco para o ecrã. É um rosto, um corpo que marca as cenas em que entra. O mesmo carisma que já se pressentia em Noite Viva, cinepeça de teatro que o Teatro Aberto levou à cena por João Lourenço a partir de Conor McPherson. Estava ali exposta a sua invulgar cinegenia..Além daquilo a que se chama "boa imprensa" e hype dentro do meio, Rita já levou com o "filme" dos consensos. Venceu o Globo de Ouro e o prémio da SPA de melhor atriz. Às tantas, pensamos na série Sara e na personagem de Beatriz Batarda, que também lida com essa institucionalização da consagração. Ri-se quando lhe falamos disso e não inventa: "A isso dos prémios reagi de forma natural... não penso muito nisso. Se me estão a dar um prémio é sinal de que estão a reconhecer o teu trabalho. A sério, nunca vou querer mostrar um lado blasé e ingrato. Fico genuinamente contente por reconhecerem e gostarem do meu trabalho, mas claro que o meu dia-a-dia não vai girar em torno disso. Os prémios não vão influenciar o meu trabalho. Se me focar nos prémios, o meu trabalho vai ser prejudicado, pois vou começar a ter um olhar de fora.".Mas deduz-se, está na cara, que a prioridade desta atriz que foi revelada entre os Artistas Unidos e a Cornucópia vai ser a companhia que fundou, o Teatro da Cidade. É lá que quer continuar a experimentar e "a fazer um trabalho permanente". Diz-nos, com uma voz apaixonada, que é um projeto a longo prazo..Quem se lembra do seu discurso nos Globos de Ouro lembra-se de palavras de contestação face à situação do orçamento da cultura. Rita Cabaço é uma atriz sem medo da imagem de contestatária e sobre o futuro dos financiamentos no seu setor não está com um sorriso estampado de otimismo: "Só quando vir o aumento das verbas para a cultura é que acredito... Só quando sentir que as coisas estão a mudar na prática. Ainda estamos a passar por tempos complicadíssimos. Se sou contestatária? A nossa profissão dá-nos esse espaço para termos uma voz ativa. Faz-me confusão ver as coisas como estão e não dizer nada. No teatro temos tão pouco espaço de antena que quando podemos falar é importante convocar temas que precisam de mudança. É importante dizer que as coisas estão mal e que continuam mal. Melhorou? Deram mais migalha? Não serve. É preciso apontarmos para os problemas. Mas claro que fico otimista com essa projeção que aponta para um aumento na cultura, mas não vou ficar à sombra da bananeira a pensar que agora vai ficar tudo extraordinário..."