Uma pertinente desconstrução das desconstruções pertinentes

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Lovecraft Country, que se estreou na HBO Portugal a 17 de Agosto, é uma série de televisão igual a tantas outras nos seus aspectos essenciais: uma descarga controlada de "excelentes" valores de produção, em que um orçamento pesado, mínimos olímpicos de competência técnica, e uma atenção profissional a pormenores de cenário e decoração fazem o trabalho de sapa, compensando a quase total ausência de ingredientes como originalidade, imaginação ou capacidade de criar estranheza. Os seus defeitos e limitações são tão familiares que acabam por ser rasurados pelas exigências simetricamente reduzidas que colocam à atenção do espectador. Os três episódios transmitidos até agora são uma mnemónica dirigida a uma matriz anestesiada: a rede interna de associações e expectativas de todos os espectadores que já reconhecem esta sintaxe visual, atalhos narrativos e maneirismos segmentados a quilómetros de distância, e que os assimilam com a mesma naturalidade com que os leitores de romances assimilam semiconscientemente os indicadores de diálogo ("disse", "declarou", "indagou", etc.). - Lovecraft Country - afirmou solenemente a HBO. - Sim - respondeu o espectador, sem pensar muito no assunto.

Mas a série não é apenas isto; não por aceder a surpreendentes reservas de interesse e talento, mas porque não quer ser apenas isto, e declara programaticamente não ser apenas isto. Num certo sentido, a lógica que aplica a si mesma não é a do guião mas a do dossiê de imprensa: cada episódio parece um manual de instruções, ou uma apresentação em Power Point, dirigida a pessoas que vão escrever sobre a série, com os pontos salientes devidamente destacados. O texto que tenciona incentivar - a mistura de divulgação jornalística e crítica cultural que é agora um apêndice essencial de cada produto televisivo - seria qualquer coisa como isto: Lovecraft Country apropria o imaginário da ficção de H. P. Lovecraft para explorar e "desconstruir" os preconceitos do autor. É "original" porque coloca protagonistas negros num tipo de enredo do qual foram historicamente excluídos. Conta a história - mais "pertinente" do que nunca, nestes "tempos conturbados" que vivemos, etc. - do racismo no Estados Unidos, através de uma família negra que atravessa a América dos anos 50 e encontra tanto os perigos reais da altura (supremacistas brancos, espaços segregados, xerifes violentos) como alguns perigos fictícios (monstros, cefalópodes gigantes, seitas ocultas). Os monstros serão metáforas para os racistas? Sim, os monstros são metáforas para o racismo. O verdadeiro terror será o racismo? Sem dúvida.

Algumas destas coisas funcionam; outras apenas querem funcionar, e a série comporta-se como se esse desejo preventivo cumprisse o essencial da tarefa. A juntar à tapeçaria temática por decreto, alguns semáforos de seriedade reforçam a intenção de "abordar assuntos importantes", mas uma banda sonora que alterna hip-hop contemporâneo com Gil Scott-Heron e excertos falados de James Baldwin assemelha-se a pouco mais do que a alguém que decide usar óculos para parecer mais inteligente. O ritmo é demasiado errático e a imaginação demasiado pobre para dar vida ao que são essencialmente macros de Excel. O segundo episódio (o pior dos três) consegue transformar um enredo empolgante no papel - mansão isolada, conspiração antiga, ritual místico para abrir um portal para outras dimensões, etc. - em algo menos incómodo e assustador que um filme do Harry Potter. Demasiado mecânico e bem-comportado para ser uma aventura pulp eficaz, demasiado tolo e apressado para ser terror de qualidade, demasiado difuso e superficial para ser uma "desconstrução" interessante do imaginário de Lovecraft: a "relevância", medida pela correspondência com os noticiários do dia e as colunas de opinião da semana, é de facto tudo o que resta.

O problema maior talvez seja essa dissonância entre a série como ela se exibe e o universo fictício que supostamente tentou reimaginar. Lovecraft é um autor notoriamente difícil de adaptar ao ecrã, porque os seus mundos são inteiramente compostos de palavras, com longas sequências de personagens a folhear volumes antigos, a penar de arquivo em arquivo e a tentar descrever o indescritível. O seu conto típico começa no rescaldo de acontecimentos terríveis que levaram o narrador ao limite da desintegração psíquica; aproveitando os últimos resquícios de sanidade, tenta deixar um registo para a posteridade, de uma forma tão impessoal (e polissilábica) quanto possível. O que esse registo sugere invariavelmente é uma cosmologia vasta e terrível, na qual o ser humano sofre uma radical descentralização: uma testemunha indefesa e impotente perante uma sucessão de fundos falsos, em que uma qualquer realidade sinistra esconde outra ainda mais sinistra, com tentáculos.

As melhores recriações modernas desta fórmula não acontecem na ficção, mas na internet, e não são deliberadas, mas acidentais. Quando se relê hoje algo como O Horror em Red Hook (uma das suas histórias mais, digamos, "problemáticas", repleta de descrições "criativas" de imigrantes e estrangeiros) é difícil não descortinar semelhanças com as mais populares e tresloucadas teorias da conspiração online. O conto, com os seus rumores de uma elite secreta que rapta crianças para usar em perversos rituais sexuais num bairro de Nova Iorque, podia perfeitamente passar por material de apoio nas sagas QAnon ou Pizzagate. Em ambos os casos, uma obsessão com conhecimento inacessível serve para alimentar a ilusão de conhecimento proibido: uma taxonomia precisa, algures, ao alcance de uma "pesquisa" diligente, e que permita explicar todas as coisas que sentimos e nas quais queremos acreditar, sem perceber muito bem porquê.

Lovecraft não era um autor perfeito e o seu estilo muito peculiar de excesso retórico (simultaneamente vago e exaustivo, histérico e rigoroso) é um prazer adquirido. A sua capacidade para fertilizar imaginações receptivas reside em grande parte na forma como a sua ficção distorcia instintos que o autor não compreendia totalmente; o trajecto entre intenção e produto final era mais labiríntico do que diagramático. Lovecraft Country, por seu lado, é apenas um panfleto turístico com todas as coordenadas visíveis, prometendo aos visitantes uma estadia tranquila: é uma terra onde todos sabem porque é que as coisas acontecem.

Escreve de acordo com a antiga ortografia

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