Uma peregrinação cinéfila

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De que falamos quando falamos das abordagens da história de Portugal nas imagens que consumimos? Ou, de um modo geral, no audiovisual? Dois clichés televisivos dominam as respostas. O primeiro é o mais fácil e também o mais frequentemente aplicado: sentam-se três ou quatro especialistas em semicírculo e difunde-se através das câmaras. O segundo, para além da especialização, envolve uma afirmação de autoridade discursiva: um especialista, de novo, fala para a câmara (neste caso, basta uma), colocando-se em frente de testemunhos do passado, de preferência monumentos - quanto mais antigos, mais parecem legitimar o seu discurso.

Evitemos as generalizações. Para além das retóricas triunfantes, há acontecimentos televisivos de grande valor informativo e pedagógico que aplicam as regras dos dispositivos atrás descritos. Resta saber o que pode existir - ou ser criado - sem ceder à preguiça das rotinas instaladas.

O novo filme de João Botelho, Peregrinação, surge como um belo exemplo de criatividade e invenção, desafiando os efeitos normativos de muitas imagens geradas sem reflexão sobre o que significa... trabalhar com imagens. Ao propor a reconstituição das viagens de Fernão Mendes Pinto, no século XVI, Botelho começa por questionar os equívocos que essa mesma noção, "reconstituição", tantas vezes arrasta.

Reconstituir o quê? Os barcos? Sem dúvida. As roupas? É possível. O modo de falar? Interessante, certamente difícil... O que está em jogo é a possibilidade de superar a visão pueril que, não poucas vezes, reduz os chamados filmes históricos a catálogos de adereços mais ou menos luxuosos, sem o mais rudimentar pensamento sobre o que significa percorrer a distância (temporal, cognitiva, simbólica) que nos separa dos acontecimentos evocados.

Botelho aplica um instrumento, inesperado e fascinante, para lidar com essa distância: a música ou, mais precisamente, as canções de Fausto, do álbum Por Este Rio acima (1982), agora retrabalhadas por Luís Bragança Gil e Daniel Bernardes. Que acontece, então? Descobrimos que o concreto das experiências de Fernão Mendes Pinto não rejeita, antes parece atrair, os artifícios que as matérias musicais transportam e instalam. A histórica como colagem de referências "realistas"? Digamos que sim. A música como derrapagem "irrealista"? Sim - porque não? O certo é que, em Peregrinação, os respetivos contrastes coexistem de modo feliz e contagiante: não é uma história de especialistas, mas uma saga, bizarra e contraditória, de portugueses.

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