Uma Páscoa em paz com a guerra visível em toda a parte
Em Chernihiv, muitas pessoas dormiram mal na noite passada. Havia informações de que a Rússia podia atacar pelo céus e assombrar a Páscoa ortodoxa. No mesmo dia em que se festejava a ressurreição de Cristo, riscou-se no calendário dois meses de guerra. O exército russo retirou de Chernihiv a 5 de abril, após 39 dias de cerco e intensas batalhas que levaram 700 vidas diretamente pela guerra. Depois disso, nos dias que se seguiram, várias pessoas morreram, vítimas de minas deixadas no território, muitas em armadilhas tão dissimuladas que custa a crer que um exército em retirada tivesse tempo e criatividade para o fazer.
São inúmeros os relatos de russos que roubaram, em aldeias, o que havia. Comida, álcool, telemóveis. Procuravam sempre o que havia de melhor. Mesmo nas casas onde lhes abriram as portas deixaram armadilhas.
A Páscoa é uma data associada à introspeção e à fé pura: celebra-se um milagre, mas ao mesmo tempo um funeral. Cristo conseguiu o impossível. Nas frentes de batalha ativas em Khakiv, Izium, Lugansk, região de Zaporizhzhia, Kherson e Mariupol há uma guerra sem regras nem tréguas.
O parque industrial da metalúrgica Azovstal continua à espera que uma evacuação de civis seja possível. A comida e a água escasseiam e os soldados do batalhão Azov que os protegem em Mariupol não comem há dias, porque a comida não chega e o que há é para as crianças, depois para as mãe. E depois... há dias que não sobra quase nada.
Ontem o presidente Zelensky, em conversa com o presidente turco, frisava a necessidade urgente de uma evacuação. Erdogan vai encontrar-se hoje com Putin, antes de António Guterres, secretário-geral das Nações Unidas, que chega na terça-feira. Erdogan prometeu tentar organizar em breve um encontro entre Putin e Zelensky, pois é preciso assegurar a segurança do Mar Negro e ao mesmo tempo evitar uma crise alimentar - a Turquia é altamente dependente dos cereais da Ucrânia.
A crise económica ainda não chegou à Ucrânia, que está a viver numa economia de guerra - de reservas e da ajuda humanitária -, mas quando os preços subirem, além da catástrofe humanitária pela destruição e fome em territórios ocupados, como Mariupol, vamos ter inflação e fome espalhada ao país em geral.
Ontem, no entanto, foi dia de celebração e parecia estar tudo bem. Nem sequer houve sinal de sirenes. A liturgia decorreu com normalidade e alguma emoção. Muitas destas pessoas já não entravam numa igreja há mais de dois meses - desde que a igreja do cemitério de Yatsevo foi destruída, estas deixaram de ser percebidas como locais seguros. Cerca de 200 pessoas fizeram um silencioso cordão humano à volta da porta do templo, à espera da bênção, que começou pelas nove horas locais. Alguns cristãos já ali estavam desde as 7.00 com os seus cestos de vime contendo aquilo que queriam abençoar: bolos de Páscoa, pão (o corpo de Cristo), vinho (o sangue de Cristo), ovos pintados à mão, pepinos, mel, um pouco de tudo. O padre Myron, com um balde e um aspersor, benzia os fiéis com a água santificada.
Há risos à mistura, pois o momento, embora seja solene, é de descontração - e que falta faz rir em público... O presidente da câmara, Vladyslav Atroshenko, esteve presente com a família, mantendo a sua postura típica, sóbrio mas presente, perto das pessoas, naquilo que interessa.
Também havia militares, nesta pequena igreja do século XII, dedicada à Santa Paraskevi de Roma, que tinha o poder de curar cegos e que foi morta pelo império romano. A igreja é pequena e a atmosfera é secreta, típica das celebrações ortodoxas em que os fiéis beijam e tocam os ícones em silêncio.
Quando o padre Myron me viu a fotografar, interrompeu a cerimónia para que me dizer que isso era interdito. Acatei e sai. Esperei pela sua bênção como outro comum fiel. Fotografei o momento porque o achei quase irreal, depois de ver tanta destruição nesta cidade, de ver o cemitério no parque de Yalivshchyna com centenas de placas fúnebres.
Neste domingo, estavam 20º C, o sol brilhou várias vezes durante a manhã, e enquanto Tanya, Katya e Sergii eram abençoados, o antigo diretor do teatro e da academia de música em frente, Taras Shevchenko, ria-se com a vela e o "paska" já benzidos. Tudo parecia normal, um verdadeiro dia de primavera. Dizem por aqui que depois da Páscoa chove menos. Parece que o bem-estar também mora aqui, ou foi Cristo que ressuscitou e nos veio abençoar.