O seu nome é Jake Adelstein. Um americano nascido no Missouri que foi estudar para Tóquio na década de 1980 e em 1993 já integrava o jornal Yomiuri Shimbun, um dos mais importantes do Japão. Tornou-se o primeiro jornalista estrangeiro (gaijin) a trabalhar naquela redação, e por lá se manteve durante 12 anos, fazendo cobertura de crimes ligados ao submundo da cidade e imergindo nos códigos complexos das relações entre a imprensa e a polícia. Dessa experiência intensiva nasceu o livro Tokyo Vice, publicado em 2009, um relato de memórias que se perde nos labirintos da Yakuza, o crime organizado japonês, e no ambiente ameaçador que se lhe colou à pele. "Não posso viajar por Tóquio sem pensar em coisas terríveis", disse na altura da apresentação do livro em Nova Iorque, referindo que uma simples ida às compras com o filho num centro comercial lhe podia fazer lembrar execuções sangrentas com espadas de samurai..Estas memórias de Adelstein são o coração da série homónima estreada recentemente na HBO Max - ou, pelo menos, são a matéria verídica a partir da qual se extraiu uma linha de ficção. Podemos defini-la como um thriller que joga com o nervo jornalístico, mas, na forma, é um conto noir que nos embala pela melancolia sedutora das personagens, algumas delas autênticos animais noturnos de olhares indecifráveis, outras, estrangeiras que definitivamente não estão "lost in translation". E para começar com determinação e músculo, nada como um primeiro episódio sob a batuta de Michael Mann, porventura o realizador veterano que melhor sabe medir a espessura do ar dessas noites, com uma câmara atenta à fisicalidade de um mundo em processo de revelação. Precisamente porque, nesse início, Jake (Ansel Elgort) ainda se está a inserir numa nova realidade dentro da cultura que ele já absorveu pela língua..Mann não assina mais nenhum dos restantes sete episódios de Tokyo Vice (um ou outro um pouco menos inebriantes), mas enquanto produtor executivo também não deixa que se percam as notas lançadas no piloto, com o zelo visual a fortificar uma lenta combustão narrativa. Seguimos então os primeiros passos do gaijin, de fato e gravata, no interior do jornal que tenta travar o seu "excesso" de empenho. O jovem Jake, porém, não está para se ficar pela mediania, depois de tantas horas de estudo solitário, e agarra-se com unhas e dentes à sua autoimposta missão de repórter, que diz ser "aumentar o conhecimento do mundo todos os dias". Neste caso, um repórter com cara de puto esperto que anda à caça de oportunidades para se aproximar de figuras que o possam conduzir debaixo da superfície de Tóquio, na esperança de alcançar algum respeito com o seu trabalho..Na sequência de duas mortes sinistras - um homem com uma espada espetada na barriga, encontrado numa ponte, e outro que se imola pelo fogo, num ato público de suicídio -, o protagonista começa a juntar elementos e a estabelecer contactos, cavando cada vez mais fundo, até deixar de estar isolado na navegação perigosa. Entre esses contactos, o do chefe da polícia interpretado por Ken Watanabe será o mais marcante, porque projeta uma silhueta paterna em terra estranha, enquanto lhe ensina duas ou três coisas sobre as sofisticadas coreografias entre a Yakuza e a polícia (e o que chega aos jornais)..Em rigor, há dois tipos de Yakuza representados em Tokyo Vice: um clã da velha guarda, cuja ação assenta na pureza das tradições e numa conduta de honra para controlar o status quo, e o outro com o objetivo único de desestabilizar esse mesmo status quo. Um dos deleites particulares da série passa justamente pela observação do estilo de vida destes gangues no interior da cultura japonesa (algo a que o livro de Jake Adelstein terá dado sentido de detalhe), e o modo como o jornalista se move num tabuleiro complexo. Às tantas Jake já está tão tu cá, tu lá com um jovem mafioso, que é possível experimentar genuínos momentos de descontração, como aquele em que discute entusiasticamente o teor mais ou menos sexual do tema I Want It That Way, dos Backstreet Boys, que passa no rádio do carro....Isto só acontece porque, apesar do material pesado, Tokyo Vice não adota a típica postura sisuda à prova de bala dos noir modernos. E isso vai bem com a escolha de Ansel Elgort para o papel principal, um ator que parece mais confortável no registo do jornalista imberbe e afoito do que na pele do herói romântico de West Side Story, de Steven Spielberg. Na verdade, esta nova aventura implicou um nível de comprometimento diferente, já que, antes de partir para Tóquio, Michael Mann obrigou o ator a acompanhar em Los Angeles repórteres de investigação criminal, como treino para a personagem que ia representar. O resto veio com a própria cidade, a vivência in loco e uma dedicação rara na aprendizagem da língua - Elgort pode não ter chegado a um nível avançado de japonês mas a quantidade de diálogos que sustenta ao longo da série são a prova de uma compreensão mais do que fonética. Para além disso, este é o seu primeiro crédito como produtor executivo..Mas o crédito da qualidade de escrita de Tokyo Vice, esse pertence ao dramaturgo J.T. Rogers (autor de Oslo), que está mais interessado na dinâmica das estruturas de poder e no fôlego controlado da história, do que em dar rédea solta à violência por si só. Esta vai-se manifestando de maneira cirúrgica, até adquirir outro patamar ao quinto episódio. A sua sugestão, porém, está em quase tudo, desde as luzes de néon ao preço das garrafas de champagne na noite de Tóquio. A ameaça inimiga só parece não pairar na hora da experiência gastronómica..dnot@dn.pt