Um grupo de jovens, com roupa desportiva e latas de cerveja na mão, encontra-se para ouvir música, dançar e conviver. A música não engana: estamos numa rave party ao ar livre numa noite de calor, algures longe de tudo. Crowd, o espetáculo que a coreógrafa Gisèle Vienne traz no próximo fim de semana à Culturgest, em Lisboa, fala-nos da juventude e da importância da festa como ritual de iniciação e também nos fala da violência e das emoções à flor da pele..Gisèle Vienne, de 42 anos, é um dos nomes mais importantes da nova dança francesa. O seu percurso, no entanto, está longe de ser o tradicional: não estudou dança nem coreografia, nunca foi ela própria uma bailarina. "Fiz dança quando era miúda, mas não muito", conta, numa conversa telefónica, em inglês. "Fiz ballet e rock'n'roll acrobático. Infelizmente, não aprendi dança contemporânea e o ballet não correu muito bem porque o meu corpo não se adequava, não foi fácil." Em vez disso, estudou música durante toda a infância e juventude e aprendeu a tocar harpa. "Ainda sei tocar, mas já não toco muito", ri-se. Por outro lado, a mãe, que é artista, também foi uma grande influência: "Não me dava aulas mas ensinou-me bastante em casa: fazíamos desenho, escultura, modelagem. Foi muito importante para mim. Despertou-me para as artes e para o pensamento, sempre estive muito atenta aos movimentos culturais e à arte." Na universidade estudou Filosofia e depois disso também fez um curso de teatro de marionetas. E depois disto tudo começou a experimentar a dança.."Em 1999 eu tinha 23 anos e comecei a trabalhar com bailarinos, mas estava muito mais perto da arte contemporânea do que da dança", recorda. A sua abordagem ao movimento começou sempre por ser mais intelectual do que física: "As minhas perguntas era mais sobre cultura e movimento, a relação entre o corpo real e o corpo artificial e ficcional." E explica: "Não aprendi dança e sinto essa falta no meu corpo. Mas tendo estudado música, artes visuais, filosofia e marionetismo, percebi que havia algumas portas que poderia abrir e que me ajudavam na minha relação com os bailarinos. Podia colocar-lhes questões. E a vantagem de ser uma pessoa estranha, de não ter o background que os outros coreógrafos têm e não ter essa linguagem comum, é que poderia chegar aos movimentos de maneira diferente.".A coreógrafa admite que às vezes propõe aos bailarinos movimentos muito complicados ou que não fazem sentido para eles, mas, trabalhando juntos, encontram maneiras de chegar lá. "É um trabalho de colaboração, aprendo imenso com eles." Após 20 anos, Gisèle Vienne já criou a sua própria linguagem. Por exemplo, o uso do slow motion é algo que ela sempre tem feito, mas que em Crowd é levado ao limite..Uma curiosidade: Crowd começou a nascer em Guimarães em 2011, durante a Capital Europeia da Cultura, onde Gisèle Vienne apresentou o espetáculo Showroomdummies. Nessa altura, recorda, estava a trabalhar sobre A Sagração da Primavera, de Stravinsky: "Foi aí que percebemos qual seria o vocabulário desta peça. Durante dois anos ainda trabalhei sobre A Sagração da Primavera, depois acabei por deixar de lado a música de Stravinski mas queria manter a estrutura, a dramaturgia e todas as questões teóricas que são levantadas por essa peça."."A Sagração da Primavera é uma celebração pagã e eu queria trabalhar a ideia de festa contemporânea, que tem muitas influências dos ritos pagãos", explica a coreógrafa. "Só depois decidi ser mais precisa e referir diretamente as festas rave e a cultura techno. De uma maneira geral, interessa-me muito a cultura juvenil e de tribos associadas a diferentes a géneros musicais, metal, punk, rock." A música que se ouve em Crowd foi selecionada pelo músico britânico Peter Rehberg. Quem estiver "dentro da cena techno" reconhecerá alguns temas de Michael Göttsching, Underground Resistance, KTL, Jeff Mills e outros. "Se se olhar muito de perto, a música é dos anos 1980 e 1990, mas para os outros a música poderia ser atual, porque o ambiente é muito semelhante ao das festas do século XXI", explica Gisèle Vienne.."Interessa-me muito explorar o papel da festa na comunidade. Não é apenas um sítio onde as pessoas se divertem e embebedam, isso é uma forma simplista de ver as coisas", diz a coreógrafa. "As festas são mais do que isso, são um espaço de transgressão, onde as pessoas estão num determinado estado de espírito, com um comportamento específico." Gisèle refere o trabalho de Bernard Rimé, que tem investigado a partilha social de emoções e a experiência emocional da multidão (crowd) em contextos como as cerimónias religiosas, os eventos desportivos e as celebrações festivas..Ao longo do espetáculo vamos identificando várias dinâmicas. O grupo dos rapazes, o grupo das raparigas. Os olhares sedutores entre rapazes e raparigas. Ou só entre rapazes. Ou só entre raparigas. Os beijos desejados e aqueles efetivamente concretizados. Os que são amigos e os que são estranhos no grupo. O modo como o grupo os integra ou não. A tensão. As discussões. É possível identificar algumas narrativas principais e várias narrativas secundárias. Gisèle Vienne vai mais longe e acredita que cada um dos 15 intérpretes poderia fazer um solo com a sua personagem e a sua narrativa: "É como se pudéssemos isolá-los e fazer 15 espetáculos diferentes.".E o que é verdadeiramente surpreendente é o modo como tudo isto acontece. Gisèle Vienne fez um trabalho profundo sobre o tempo e o movimento. A primeira coisa em que reparamos quando os intérpretes entram em cena é no modo como os seus movimentos estão desacelerados. E como por momentos podem até ficar "congelados". A coreógrafa explica que se inspirou em Nijinsky e na sua ideia de fazer "uma coreografia sem movimento". "Será que é possível? Como?", pergunta. "Há sempre um movimento mesmo quando não o vemos. Mas tentei encontrar essa ausência de movimento [stillness, em inglês].".Algo muito importante quando se trabalha a desaceleração ou slow motion é que nunca se deve tentar "imitar" um movimento real - o processo é exatamente o oposto, é pegar num movimento e dissecá-lo em frames, e fazê-lo "de uma forma muito orgânica", explica "É como se houvesse uma hipersensibilidade no corpo todo, não pode ser apenas em algumas partes do corpo. Está no rosto, em todo o lado. Há uma energia interior que faz toda a diferente na qualidade do que se vê. Todo o corpo está muito consciente." A coreografia acontece em camadas. Os intérpretes podem estar a mover-se no ritmo real ou podem estar em slow motion ou em repetição ou até podem até estar parados. Podem estar a movimentar-se todos em sintonia, ou por grupos ou individualmente. "Às vezes estão em harmonia com a música, outras vezes estão em tensão", diz a coreógrafa. O resultado é admirável..E, no final da noite, o que fica naquelas personagens? Que transformações se operaram naquelas pessoas? São diferentes do que eram no momento em que chegaram à festa? O que levam para casa, além das feridas, do suor no corpo e do cabelo desgrenhado?. Crowd De Gisèle Vienne Culturgest, Lisboa Dias 8 e 9 de dezembro
Um grupo de jovens, com roupa desportiva e latas de cerveja na mão, encontra-se para ouvir música, dançar e conviver. A música não engana: estamos numa rave party ao ar livre numa noite de calor, algures longe de tudo. Crowd, o espetáculo que a coreógrafa Gisèle Vienne traz no próximo fim de semana à Culturgest, em Lisboa, fala-nos da juventude e da importância da festa como ritual de iniciação e também nos fala da violência e das emoções à flor da pele..Gisèle Vienne, de 42 anos, é um dos nomes mais importantes da nova dança francesa. O seu percurso, no entanto, está longe de ser o tradicional: não estudou dança nem coreografia, nunca foi ela própria uma bailarina. "Fiz dança quando era miúda, mas não muito", conta, numa conversa telefónica, em inglês. "Fiz ballet e rock'n'roll acrobático. Infelizmente, não aprendi dança contemporânea e o ballet não correu muito bem porque o meu corpo não se adequava, não foi fácil." Em vez disso, estudou música durante toda a infância e juventude e aprendeu a tocar harpa. "Ainda sei tocar, mas já não toco muito", ri-se. Por outro lado, a mãe, que é artista, também foi uma grande influência: "Não me dava aulas mas ensinou-me bastante em casa: fazíamos desenho, escultura, modelagem. Foi muito importante para mim. Despertou-me para as artes e para o pensamento, sempre estive muito atenta aos movimentos culturais e à arte." Na universidade estudou Filosofia e depois disso também fez um curso de teatro de marionetas. E depois disto tudo começou a experimentar a dança.."Em 1999 eu tinha 23 anos e comecei a trabalhar com bailarinos, mas estava muito mais perto da arte contemporânea do que da dança", recorda. A sua abordagem ao movimento começou sempre por ser mais intelectual do que física: "As minhas perguntas era mais sobre cultura e movimento, a relação entre o corpo real e o corpo artificial e ficcional." E explica: "Não aprendi dança e sinto essa falta no meu corpo. Mas tendo estudado música, artes visuais, filosofia e marionetismo, percebi que havia algumas portas que poderia abrir e que me ajudavam na minha relação com os bailarinos. Podia colocar-lhes questões. E a vantagem de ser uma pessoa estranha, de não ter o background que os outros coreógrafos têm e não ter essa linguagem comum, é que poderia chegar aos movimentos de maneira diferente.".A coreógrafa admite que às vezes propõe aos bailarinos movimentos muito complicados ou que não fazem sentido para eles, mas, trabalhando juntos, encontram maneiras de chegar lá. "É um trabalho de colaboração, aprendo imenso com eles." Após 20 anos, Gisèle Vienne já criou a sua própria linguagem. Por exemplo, o uso do slow motion é algo que ela sempre tem feito, mas que em Crowd é levado ao limite..Uma curiosidade: Crowd começou a nascer em Guimarães em 2011, durante a Capital Europeia da Cultura, onde Gisèle Vienne apresentou o espetáculo Showroomdummies. Nessa altura, recorda, estava a trabalhar sobre A Sagração da Primavera, de Stravinsky: "Foi aí que percebemos qual seria o vocabulário desta peça. Durante dois anos ainda trabalhei sobre A Sagração da Primavera, depois acabei por deixar de lado a música de Stravinski mas queria manter a estrutura, a dramaturgia e todas as questões teóricas que são levantadas por essa peça."."A Sagração da Primavera é uma celebração pagã e eu queria trabalhar a ideia de festa contemporânea, que tem muitas influências dos ritos pagãos", explica a coreógrafa. "Só depois decidi ser mais precisa e referir diretamente as festas rave e a cultura techno. De uma maneira geral, interessa-me muito a cultura juvenil e de tribos associadas a diferentes a géneros musicais, metal, punk, rock." A música que se ouve em Crowd foi selecionada pelo músico britânico Peter Rehberg. Quem estiver "dentro da cena techno" reconhecerá alguns temas de Michael Göttsching, Underground Resistance, KTL, Jeff Mills e outros. "Se se olhar muito de perto, a música é dos anos 1980 e 1990, mas para os outros a música poderia ser atual, porque o ambiente é muito semelhante ao das festas do século XXI", explica Gisèle Vienne.."Interessa-me muito explorar o papel da festa na comunidade. Não é apenas um sítio onde as pessoas se divertem e embebedam, isso é uma forma simplista de ver as coisas", diz a coreógrafa. "As festas são mais do que isso, são um espaço de transgressão, onde as pessoas estão num determinado estado de espírito, com um comportamento específico." Gisèle refere o trabalho de Bernard Rimé, que tem investigado a partilha social de emoções e a experiência emocional da multidão (crowd) em contextos como as cerimónias religiosas, os eventos desportivos e as celebrações festivas..Ao longo do espetáculo vamos identificando várias dinâmicas. O grupo dos rapazes, o grupo das raparigas. Os olhares sedutores entre rapazes e raparigas. Ou só entre rapazes. Ou só entre raparigas. Os beijos desejados e aqueles efetivamente concretizados. Os que são amigos e os que são estranhos no grupo. O modo como o grupo os integra ou não. A tensão. As discussões. É possível identificar algumas narrativas principais e várias narrativas secundárias. Gisèle Vienne vai mais longe e acredita que cada um dos 15 intérpretes poderia fazer um solo com a sua personagem e a sua narrativa: "É como se pudéssemos isolá-los e fazer 15 espetáculos diferentes.".E o que é verdadeiramente surpreendente é o modo como tudo isto acontece. Gisèle Vienne fez um trabalho profundo sobre o tempo e o movimento. A primeira coisa em que reparamos quando os intérpretes entram em cena é no modo como os seus movimentos estão desacelerados. E como por momentos podem até ficar "congelados". A coreógrafa explica que se inspirou em Nijinsky e na sua ideia de fazer "uma coreografia sem movimento". "Será que é possível? Como?", pergunta. "Há sempre um movimento mesmo quando não o vemos. Mas tentei encontrar essa ausência de movimento [stillness, em inglês].".Algo muito importante quando se trabalha a desaceleração ou slow motion é que nunca se deve tentar "imitar" um movimento real - o processo é exatamente o oposto, é pegar num movimento e dissecá-lo em frames, e fazê-lo "de uma forma muito orgânica", explica "É como se houvesse uma hipersensibilidade no corpo todo, não pode ser apenas em algumas partes do corpo. Está no rosto, em todo o lado. Há uma energia interior que faz toda a diferente na qualidade do que se vê. Todo o corpo está muito consciente." A coreografia acontece em camadas. Os intérpretes podem estar a mover-se no ritmo real ou podem estar em slow motion ou em repetição ou até podem até estar parados. Podem estar a movimentar-se todos em sintonia, ou por grupos ou individualmente. "Às vezes estão em harmonia com a música, outras vezes estão em tensão", diz a coreógrafa. O resultado é admirável..E, no final da noite, o que fica naquelas personagens? Que transformações se operaram naquelas pessoas? São diferentes do que eram no momento em que chegaram à festa? O que levam para casa, além das feridas, do suor no corpo e do cabelo desgrenhado?. Crowd De Gisèle Vienne Culturgest, Lisboa Dias 8 e 9 de dezembro