Uma morte em Taiwan criou a lei da extradição. Afinal o que se passa em Hong Kong?

Saiba o que querem os manifestantes e como a "transição" política funciona a favor, e contra, os interesses da China e dos milhões que protestam nas ruas.
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A frase que define a relação da China com Hong Kong e Macau - cuja soberania readquiriu em 1997 e 1999, respetivamente - é conhecida: "Um país, dois sistemas." O que os últimos dias têm mostrado, também, é que estas "regiões administrativas especiais" têm uma complexa vida política. No último domingo, mais de dois milhões de cidadãos encheram as ruas em protesto contra o governo liderado por Carrie Lam, exigindo, entre outras coisas, a demissão da presidente do Conselho Executivo que não podem eleger (foi escolhida por um comité eleitoral, e não por voto direto).

Durante a última semana, as ruas de Hong Kong encheram-se de manifestantes. Os primeiros protestos dirigiam-se a uma lei que previa a possibilidade de extradição de suspeitos de crimes detidos no território para jurisdições diferentes - como a da própria República Popular da China. A grande vitória dos manifestantes surgiu no sábado, quando Carrie Lam anunciou, numa declaração, que decidira "suspender" a lei. Apesar de ter assumido "arrependimento" pela forma como agiu, a líder do executivo não desistiu da polémica lei. E isso fez com que as ruas de Hong Kong se voltassem a encher de manifestantes (dois milhões, segundo os organizadores do protesto), naquela que é a maior contestação vista no território desde 1989, depois da contestação aos acontecimentos de Tiananmen.

Este protesto é muito complexo, e muito revelador da frágil situação política em Hong Kong. Para compreender o seu significado é necessário entender o "período de transição" que marca o presente.

A China controla as leis de Hong Kong?

Não. Quando o Reino Unido devolveu a administração do território à China, em 1997, foi acordado um estatuto especial de autonomia. Durante 50 anos, até 2047, a lei de Hong Kong defende a liberdade de imprensa, a autonomia judicial e o estatuto dos funcionários públicos, entre outras regras diferentes das que vigoram em Pequim (como a liberdade de acesso online).

O que a China quer mudar em Hong Kong?

A garantia de um período de transição não é suficiente para o grande movimento "pró-democracia" que existe no território. Os protestos de 2014 - que ficaram conhecidos como o movimento dos "guarda-chuvas" - exigiam eleições livres, por sufrágio direto. A solidariedade com as vítimas de Tiananmen tem, também, raízes fortes em Hong Kong. Tudo isso é visto, por Pequim, como um desafio. Noutros territórios "autónomos", como o Tibete, o grau de liberdade da crítica não chega perto do que existe em Hong Kong. A polémica lei da extradição é vista, assim, como uma tentativa de furar as garantias da transição e acelerar a homogeneização política.

Como nasceu a lei da extradição?

É uma longa e terrível história. Em 2018, um cidadão de Hong Kong viajou para Taiwan (estado independente - a velha ilha Formosa - que os chineses reivindicam como Taipei) com a sua namorada. Lá, segundo a sua própria confissão posterior, o homem matou a namorada, esquartejou-a e lançou-a a um rio. Conseguiu regressar a Hong Kong, sendo acusado em Taiwan pelo assassinato. Como não existe nenhum acordo judicial entre Hong Kong e Taiwan, o homem não pode ser extraditado, respondendo apenas, no território autónomo, por "evasão fiscal". Este é o argumento apresentado pelo governo de Carrie Lam para avançar com a lei - que permite a extradição para vários estados que não tenham acordos judiciais com o território, como a própria China. A lei inclui uma lista de 37 crimes - nenhum deles político - e garantia que um tribunal de Hong Kong se pronunciasse sobre a extradição. Mas os críticos consideram que esta é apenas uma forma subtil de colocar em risco a autonomia do território.

Com a lei suspensa, as manifestações vão parar?

Tudo indica que não. A maior de todas as manifestações aconteceu este domingo, já após o anúncio da "suspensão" da lei. O braço-de-ferro é agora outro: os manifestantes querem que a lei seja definitivamente afastada. Mas Carrie Lam garante que isso seria um erro, e não admite desistir, apenas adiar temporariamente a entrada em vigor da lei. Aliás, o recuo terá sido decidido após um encontro com emissários de Pequim, fora de Hong Kong. Nas ruas, citados pelos principais jornais, vários manifestantes exigem agora a demissão de Carrie Lam. O protesto que não dispõe de líderes oficiais, e foi crescendo à medida que a resposta do executivo se mostrava mais dura (vários manifestantes foram feridos pela polícia, que usou balas de borracha e gás lacrimogéneo). Um manifestante morreu, por ter caído do alto de um edifício onde colocara uma faixa. A polícia afirmou tratar-se de um "suicídio".

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