Uma miscelânea de narizes. De Gogol e não só
"Bem vindos ao parque de campismo do São Luiz." Aqui vamos olhar com atenção redobrada para os nossos rostos e os nossos narizes. Há narizes pequenos e narizes grandes, narizes redondos e outros mais finos, uns achatados e outros aquilinos. Poderemos conhecer a pessoa pelo seu nariz? O que diz o nosso rosto daquilo que somos? E se o nosso rosto mudar, nós também nos transformamos em outro diferente?
Em O Nariz, Nikolai Gogol imaginou uma situação tão absurda quanto divertida em que o nariz do major Kovaliov resolve sair do rosto que lhe pertence e adquirir vida própria, fazendo com que este oficial ande pelas ruas de São Petersburgo, apavorado, à procura do seu nariz pois um homem do seu nível social não pode comparecer a reuniões e eventos sem nariz. Sem orelhas ainda podia ser mas sem nariz não é possível! Entretanto, o nariz decide esconder-se em casa do barbeiro Ivan Iákovlevitch e da sua mulher, que fazem os possíveis para se desfazer dele sem serem apanhados. Como é que este facto insólito foi ocorrer? E como obrigar o nariz a voltar a "casa"? A situação é de facto divertida e ao mesmo tempo permite-nos observar as reações das diferentes personagens e as relações de poder que se estabelecem naquela Rússia de finais do século XIX.
Luís Vieira e Rute Ribeiro, os diretores de A Tarumba - Teatro de Marionetas, há muito tempo que queriam pegar nesta "história absurda e fantástica do homem que acorda de manhã e perdeu o nariz" e apresentá-la de forma diferente. À sua maneira. "Não queríamos contar a história tal como ela é. Queríamos pegar nela e estabelecer contrapontos com a atualidade, com coisas que acontecem à nossa volta, e queríamos brincar um pouco com a história", explica Rute Ribeiro. É por isso que este espetáculo que agora fazem não é bem O Nariz de Gogol, mas podia ser.
"A história aparece em pinceladas muito largas mas está lá", garantem. Depois, os criadores de A Tarumba decidiram juntar-lhe mais uma série de narizes, de autores, de citações. Sempre com um piscar de olhos à atualidade. "Não podíamos passar ao lado do que está a acontecer hoje, aqui em Portugal, na Europa, na América, no mundo", explica Luís Vieira. "Vivemos num tempo em que coisas que eram anormais se tornaram normais. Como defender posições racistas, por exemplo. Assistimos a uma escalada da anormalidade. E isso é assustador. A política tornou-se uma grande operação de marketing, em que não interessa discutir ideias mas só provocar emoções. E há como que um desfile de um bestiário populista, um grande pesadelo para a humanidade."
Eis, pois, como chegamos àquela tenda montada em pleno Jardim de Inverno do Teatro São Luiz. Entramos lá e é como se estivéssemos num universo à parte. Um misto de circo com festival eurovisão da canção dos anos 1970. um pequeno espetáculo de horrores onde somos recebidos por dois apresentadores loiros que fixam os nossos narizes com atenção redobrada. Num ambiente kitsch, onde ganha lugar de destaque um lustre e um enorme televisor antigo, encimado por um naperon de renda e uma coleção de cãezinhos que abanam o pescoço, começam a surgir as figuras de papel articuladas, feitas de colagens, com bocas que se abrem e olhos que se mexem - uma técnica que já tinham usado em Sonho de Uma Noite de Verão.
Ali estão Gogol mas também o presidente russo Vladimir Putin (com tronco de Arnold Schwarzenegger e pernas do humorista Borat), a primeira ministra do Reino Unido Theresa May, o presidente norte-americano Donald Trump, entre outros políticos. "É uma miscelânea de narizes", ri-se Rute Ribeiro. E do meio do caos e do absurdo, a poesia revela-se como o último reduto e o humanismo dos escritores como hipótese de redenção do mundo. E de todos, o francês Jacques Prévert (1900-1977) "acaba por ser o ponto de fuga desta situação".
"O Prévert é um autor muito surreal e de que gostamos muito, por vários motivos", justifica Rute Ribeiro. Por um lado, era muito crítico, "ouvia muito as pessoas que o rodeavam e procurava nelas inspiração para falar do que se passava. atacou a igreja, atacou os políticos", por outro lado, "escreveu aqueles filmes fantásticos, e as canções que estão também aqui muito presentes. E é um dos criadores do cadavre exquis."
"Uma das linhas que esteve presente na escrita deste espetáculo, quer da escrita visual quer da construção dramatúrgica, foi a ideia de cadavre exquis. Parece às vezes que as personagens falam umas com as outras por citações trocadas, que tentam ser postas no sítio certo", diz Luís Vieira. "Queríamos ligar esta ideia de uma escrita automática e surreal a um certo nonsense da realidade, do absurdo que se vive e tentar misturar isto tudo."
Nesta miscelânea de narizes, de autores, de citações, de músicas russas e francesas, não faltam outras personagens de papel de Juliette Gréco a Camões passando por Iggy Pop, Serge Gainsboroug ou Ives Montand, cujas vozes saem de um velho gira-discos colocado ali mesmo à nossa frente. "Vamos até este universo relacionado com o Prévert - do Moulin Rouge, do amor livre e de liberdade, que é um contraponto aos tempos que vivemos. há mesmo um bestiário populista."
Dentro da tenda, os 30 ou 40 espetadores vão assistir de perto a tudo isto, num momento que se quer de intimidade quase onírica. O espetáculo dura 40 minutos e, apesar de não ser infantil, é aconselhado a maiores de seis anos.
Este não é o nariz de Gogol, mas podia ser... Com um toque de Jacques Prévert
A Tarumba - Teatro de Marionetas Teatro São Luiz, Lisboa
De segunda a domingo, 19.00
Bulhetes: 7 euros