Uma mansão em Los Angeles com calçada portuguesa
As mãos experientes de Fernando Correia passaram um mês e meio a partir pedra num dos projetos residenciais mais caros e sumptuosos dos Estados Unidos. A mansão, que está a ser construída num terreno de grandes dimensões em Beverly Hills, vai ter um total 1400 metros quadrados de calçada portuguesa, esculpida pela equipa do mestre calceteiro português. "É a primeira obra deste género na Califórnia com calçada portuguesa", diz, sem esconder a ponta de orgulho, o calceteiro de 55 anos que é dono de uma das empresas de calçada mais conhecidas do país. Fernando Correia viajou de Cascais até Los Angeles com sete calceteiros para esta empreitada de uma vida. Ficaram instalados a norte da famigerada autoestrada 405, conhecida por ter alguns dos maiores engarrafamentos do mundo, o que os obrigou a sair de casa todos os dias às seis da manhã.
Não nos foi possível visitar o local da construção, devido à segurança apertada que a rodeia. "A obra está a ser feita num local totalmente habitado à volta", conta o português, tentando descrever a magnitude do empreendimento. É difícil. "Consta que é a casa dos Estados Unidos que irá ficar mais cara", arrisca, comentando que só o anexo onde vão morar os empregados tem nove quartos.
Existem na zona de Beverly Hills e Bel-Air alguns projetos de "giga mansões", como esta, que não têm agradado às celebridades com propriedades na vizinhança. Esta obra em particular destaca-se não apenas pelo espaço que ocupa, mas também pelo design e conceito. "É totalmente diferente de tudo o que vejo por aí", refere Fernando Correia, referindo-se às típicas construções da região, cuja estrutura costuma ser de madeira e não metal e raramente é forrada a pedra. Por outro lado, os pavimentos são de betão. Encomendar calçada portuguesa para uma área tão vasta é quase inédito, em especial por não haver ligação da empresa ou dos donos a Portugal.
O que a equipa de Fernando Correia esteve neste início de verão a fazer foi a primeira parte da obra, que abrange a colocação de calçada em três locais diferentes da propriedade: a praça central, com 800 metros quadrados, uma segunda zona que vai levar uma estátua e a zona de entrada, que será concluída mais tarde. A mansão terá 20 a 25 quartos, todos suites, e está a ser construída há três anos. A previsão é de que só estará concluída em agosto de 2019, sendo que a equipa de calceteiros portugueses vai regressar antes disso para terminar a entrada - algo que não pode ser feito agora devido à constante rodagem de camiões. A obra terá 250 trabalhadores ao serviço diariamente.
Fernando Pereira Correia abriu a sua empresa homónima há trinta anos e confessa que nunca tinha visto nada assim. "É uma obra com muitos pormenores. Tenho a empresa há 30 anos e nunca fiz uma obra destas, tão elaborada." Ninguém sabe bem quem está por trás deste empreendimento de largas dezenas de milhões de dólares, mas correm rumores de que se trata de uma personalidade de vulto do Qatar, talvez um príncipe. A escolha da calçada portuguesa, aparentemente aleatória, foi feita pelos arquitetos. "Como a obra tem pouco a ver com a construção na América, quiseram fazer uma coisa diferente, mais internacional, e descobriram a calçada portuguesa", explica o mestre.
A oportunidade surgiu de um contacto online, talvez porque Fernando Correia é o autor da petição para elevar o pavimento nacional a património da Unesco. "Eu sou um amante da calçada portuguesa e aprecio trabalhos bem feitos", estabelece. "É uma arte que devia ser preservada." Natural de Lamego, começou a trabalhar nela aos 13 anos e nunca mais parou, apesar dos altos e baixos da construção em Portugal. Durante a recessão, que segundo o empresário atingiu o ponto mais crítico em 2014, foi obrigado a ir para Angola fazer obras durante um ano, tal era o deserto de encomendas em Portugal. Depois, as coisas deram a volta. "Portugal é do 8 ou 80, agora temos muito trabalho", conta, "Tenho o email cheio de propostas. Estamos numa fase muito boa. Tão boa que a empresa se pode dar ao luxo de recusar empreitadas. "Mas isto era uma obra que vai encher um bocado o orgulho."
Os desenhos que está a fazer na propriedade de Beverly Hills são requintados e fazem lembrar os florões da Avenida da Liberdade. Fernando Correia conta que já houve engenheiros de outras obras a visitarem o local e que a empresa com a qual está a trabalhar, RealStone, pretende introduzir calçada noutros projetos no sul da Califórnia. Uma oportunidade única, e algo que só os mestres portugueses, ou aqueles que foram ensinados em Portugal, conseguem fazer.
Fernando Correia lamenta que não haja mais esforços para continuar a formar calceteiros capazes de partir calçada portuguesa, apesar de admitir que é um trabalho que custa. É preciso passar muitas horas de cócoras, ao sol ou à chuva, num trabalho moroso e de precisão. "O Estado devia dar mais formação. Não aposta muito nisso e é por isso que em muitas zonas de Portugal estão a substituir a calçada por pavimentos mais fáceis de assentar", considera.
Sobre a má reputação que a calçada tem junto de muita gente, Fernando Correia apressa-se a tentar desfazer mitos. "A calçada torna-se escorregadia nalguns locais por causa de não ter manutenção e haver muitos curiosos a fazê-la." Aponta também para o problema do estacionamento. "Estive aqui um mês e meio nunca vi um carro em cima do passeio. Imagine Lisboa, os camiões de cargas e descargas: a calçada não está preparada para isso", sublinha. "Outro problema são as câmaras que se relaxam um bocado. A calçada precisa de manutenção, tal e qual um jardim."
A vantagem em relação a outros pavimentos, diz, é que "a pedra está lá sempre." Se abater, pode-se retirar e voltar a colocar. Quando salta é porque foi mal feita, porque não levou cimento nas juntas ou porque teve o tamanho errado em zonas onde andam carros, que requerem pedra de maior dimensão. "É um símbolo de Portugal no mundo inteiro", afirma, orgulhoso. "Nunca vi turistas a tirar fotos ao chão como em Lisboa." Correia refere também que foi colocada recentemente numa vila geminada com Cascais, Sausalito (ao pé de São Francisco), já que existe ali uma comunidade portuguesa interessante.
Fernando correia espera agora que o reconhecimento como património da humanidade aconteça e dê um impulso à arte, levando a maior investimento na formação. "A técnica da pedra tem muito a ver com a ver com a mão e com o martelo. A técnica do calceteiro não está na universidade, no computador ou no robô", garante. Não acredita que seja possível substituir a mestria dos calceteiros por máquinas, como já se faz noutro tipo de pavimentos. "As primeiras calçadas que se fizeram em Portugal foram no ano 1500", recorda. Apesar de tudo, está otimista. "A calçada portuguesa nunca vai morrer."