Uma lição de 1892 para a segunda vaga

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Quando a pandemia de codiv-19 começou a percorrer o planeta, a The New York Review of Books (NYRB) republicou uma série de textos de edições anteriores sobre diferentes respostas a surtos epidémicos em diferentes períodos da história. É uma leitura reveladora de como, sem o cultivar disciplinado da memória crítica, as gerações correm o risco de repetir os erros do passado, causando, com isso, muito sofrimento inútil. No sábado passado, uma bizarra multidão percorreu Berlim em protesto contra as medidas sanitárias que o governo Merkel levou a cabo para proteger a população. Tratou-se de uma espécie de Torre de Babel em movimento, incluindo seitas religiosas, inimigos das vacinas, anarquistas que protestam contra o uso de máscaras de proteção. Mas, no meio dessa gente à deriva, lá estavam os amigos de Adolf Hitler, que sabem muito bem para onde querem ir. Os jornais alemães relatam que foram apenas três os bravos polícias que impediram os nazis de pilharem o Bundestag.

Como é possível ser na Alemanha, precisamente o país europeu de grande dimensão que melhor se defendeu contra a primeira vaga da covid-19, que surgem estes protestos? A resposta simples será a de dizer que, por ter sido poupada - por mérito da sua política de saúde - às piores consequências que outros países sofreram, Berlim paga pelo seu sucesso junto dos negacionistas incondicionais. Há, porém, uma resposta mais informada num desses artigos da NYRB. Em 1988, o historiador britânico Richard J. Evans publicou um livro sobre o surto de cólera de 1892, em Hamburgo. Essa orgulhosa e conservadora cidade hanseática continuou a manter o seu governo autónomo, mesmo depois da unificação alemã bismarckiana. A elite burguesa orientava o governo da cidade através de dois objetivos: manter as atividades comerciais sempre a crescer e deixar a despesa pública no mínimo possível. Enquanto no resto da Alemanha se investia numa administração competente e na investigação científica, Hamburgo tinha um funcionalismo amador e, em nome do "direito a dispor do seu próprio corpo", recusara em 1871 uma lei para vacinação obrigatória contra a varíola, doença que mataria, meses depois, 4053 habitantes. Em 1892, perante um surto de cólera, o Senado de Hamburgo aderiu às teorias médicas obsoletas do Dr. Pettenkofer, que recusava a teoria do contágio por bacilos, partilhada pelos pais da epidemiologia moderna, na senda de John Snow (1854). Recusando as medidas de proteção propostas por Robert Koch - que depois do bacilo da tuberculose desbravava no campo da cólera -, Hamburgo sofreria 8600 mortes (13, 4 por mil habitantes), enquanto outra cidade hanseática, Bremen, perderia apenas seis vidas. Quando queremos, em todos os países, reforçar a vida escolar e laboral, no quadro adverso de uma nova vaga de covid-19, não podemos cometer o erro de esquecer a lição contida na vitória de Koch sobre Pettenkofer. Uma boa democracia não é apenas aquela que é eleita pelos cidadãos, mas a que tem governos sensatos, capazes de se orientarem pela razão e pelo conhecimento.

Professor universitário

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