Uma flor para Leonor Xavier

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Em 1998 fui nomeado cônsul-geral no Rio de Janeiro, onde vivi com a minha família durante cinco anos plenos e felizes. Foi Mário Soares, visita frequente do Brasil e do Rio, que então me disse um dia "você não é o mesmo que era em Portugal, você está mais solto e mais livre". Já Agostinho da Silva descobrira que o português fica à solta no Brasil...

A felicidade que foi o nosso tempo no Rio de Janeiro teve uma fada madrinha chamada Leonor Xavier. Ela deu-nos um mapa das pessoas e dos lugares que, com algumas pequenas diferenças, se tornaram os nossos grandes amigos e os nossos pontos de encontro. O amor pelo Brasil que temos e o carinho que ali recebemos devem muito ao "mapa da mina" que a Leonor nos escreveu uma noite, à mesa do Procópio.

Esse esquema de nomes e de relações, comentados com agudeza pela Leonor, pude confirmá-lo logo que cheguei ao Rio, porque José Aparecido de Oliveira organizou um jantar em casa de Luís António Cunha e Renata, onde todos (ou quase todos) esses personagens de fábula estavam presentes, a fim de homenagear e conversar com Mário Soares, cuja chegada coincidiu por sorte com a minha. Eu via aparecer na minha vida as criaturas de que a Leonor me tinha esboçado o perfil, nessa noite no Procópio, e tudo jogava certo, todas as peças encaixavam na história que ela me contara, como uma narrativa feita de longe que se converte de repente numa poderosa realidade. Millôr Fernandes, Cora Rónai, Chico e Eliana Caruso, Geraldo Carneiro, Marília Kranz, Olivia Byington (mãe do Gregório Duvivier, colega de escola do meu filho) examinaram-me longamente antes de decidir se, sim ou não, me acolheriam entre eles. Maria João Avillez, que estava nesse jantar, escreveu um dia esta história.

Sempre que vínhamos a Lisboa dávamos à Leonor notícia desses amigos e de muitos outros que íamos descobrindo e praticando, nessa grande prática de convivência e amizade em que o mundo carioca nos envolveu e fascinou. Portugueses à solta, encontrávamos um novo modo de ver o mundo e olhar as coisas e assim nos descobríamos melhor a nós próprios.

A Leonor Xavier foi ela mesma um exemplo dessa conversão, em que nos pomos em causa até ao fundo e saímos enriquecidos na nossa experiência e na nossa inteligência. Ela escreveu sobre o que viveu com a perceção fina que nos deslumbrara pelo fundo acerto das suas descrições. Nos seus livros encontramos as histórias de muitos portugueses a quem o Brasil fez redescobrir-se e transformar-se. E durante toda a sua vida permaneceu animada pela curiosidade e pela alegria de viver que nos transmitia por contágio, a confirmar a ideia de Espinoza que dizia que "a alegria é o afeto que permite a passagem para uma perfeição maior, pois aumenta a nossa potência de agir". A alegria e a intensa vontade de viver da Leonor eram inseparáveis da sua insaciável curiosidade e da sua sensibilidade atentíssima.

Se Rilke nos ensina que cada um traz consigo a sua morte como o seu próprio fruto, então os últimos oito anos em que a Leonor lutou contra a doença que a queria tornar, como ela dizia, "escrava do seu corpo doente", esses anos fizeram desabrochar na Leonor a afirmação plena do "milagre da vida" face ao "mistério da morte", para usar as suas próprias palavras. Ela nunca se deixou cair, continuava a aparecer, a estar connosco, a convidar-nos para sua casa. A sua escrita tornou-se mais intensa e urgente, a sua consciência da maior e menor importância das coisas da vida apurou-se, a sua fé cristã fez-se ainda mais inquieta e exigente.

Perdemo-la por fim. No mesmo dia em que prestávamos homenagem a Mário Soares, outro grandioso exemplo da força criadora da alegria, acorríamos a despedir-nos dela, agora que a deixávamos só, a fazer face ao mistério fundamental da vida e da morte.

Diplomata e escritor

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