Uma adolescente ligada à corrente
Quem nunca teve sonhos elétricos? À boleia de Giorgio Moroder e Philip Oakey foi uma geração inteira, mas nesta primeira obra vinda da Costa Rica tem a ver com um poema de um quarentão a braços com uma crise existencial. Essa é a primeira surpresa de um filme que funciona todo como uma caixa de surpresas - uma história sobre uma família a desfazer-se no meio de uma separação.
Ode a como nos parecemos com os nossos pais, Tengo Sueños Eléctricos venceu a melhor realização no Festival de Locarno e tem feito um périplo importante por diversos festivais internacionais importantes.
Algures em San José, Costa Rica, Eva é uma adolescente a mudar de pele após a separação dos seus pais. Está hesitante em viver com o pai, ultimamente a querer prosseguir uma vocação de poeta, ou a continuar na casa em obras da mãe, onde o gato incontinente dá sinais de um mal-estar evidente. Trata-se de uma família em convalescência com um divórcio que pode ser violento. Eva sente-se mais perto do pai, ele que não se importa em cuidar do gato mesmo que ainda não tenha casa. Aliás, a procura de um apartamento é uma constante nesta narrativa.
Ao mesmo tempo, o pai desenvolve problemas de irascibilidade, ora porque está a tentar uma nova conquista, ora porque se sente perdido numa nova vida. Paralelamente, Eva acaba por se envolver sexualmente com um dos amigos do pai, bem mais velho. Uma perda de virgindade aos 16 anos que a faz ver o mundo de uma outra forma. E entre ela e o pai parecem haver sinais de uma possível tensão pouco racional, mesmo que ambos reparem em sinais românticos de uma cidade com coincidências quase místicas ou cósmicas.
De um lado, o campo da adolescência, do outro o dos adultos. A adolescente, Eva, parece mais adulta e luta com as questões hormonais. Por sua vez, o pai parece adolescente. Não só o pai, o grupo de amigos, algures entre uma certa boémia e uma vida "de artista". A realizadora Valentina Maurel parece entender bem esses estados e cola a câmara perto desse "nascimento" de uma mulher, não receando filmar a masturbação feminina sem filtros, quase levando a peito a máxima de As Virgens Suicidas, de Sofia Coppola: "Óbvio, dr., nunca foi uma rapariga com 16 anos". Uma intuição feminina com todas as suas subtis contradições, sobretudo quando há que escolher entre o fascínio do pai em relação ao desgaste da mãe. Precisamente por isso, há uma estampa de dor física nessa encenação do "comig of age" - nada é romantizado.
É um retrato de família que sabe preservar nuances de uma singularidade que evita clichés: esta família não pretende ser "espelho social", por muito que se perceba o clima de uma sociedade contemporânea. Nem tão pouco se está a formar tese de psicodrama de família disfuncional. Aquele mal-estar é tão justo como certeiro, podendo até ter adendas dolorosamente pessoais, sobretudo quando a ideia de uma educação sentimental pode passar pelo conhecimento da dor: a confrontação de Eva e do pai é testada sobre a teoria de colocar em causa essa ideia do que é doloroso. Em última instância, é também um conto sobre como o tempo a passar muda tudo, abarcando a questão da violência doméstica por um ângulo menos sensacionalista.
E esta adolescência feminina não tem o labor de lugar de memória e espaço de nostalgia, antes pelo contrário: convoca uma sensação de desconforto. É como se o universo da protagonista estivesse prestes a entrar numa terra de combustão. Nesse lugar de choque e sobressalto, há coisas muito humanas e a câmara fica bem focada na fragilidade. Uma adolescência incomodativa onde nem o sexo pode ser escapatória. Se calhar por isso, esta entrada na vida adulta, com as responsabilidades e o tomar de consciência dos erros, seja áspera, escarpada.
São os "momentos decisivos" da vida de uma família: ou se "mata" o pai, ou ficamos como pai. E não é por acaso que esse impulso sexual de Eva venha com comichões, com expressões de dor - é doloroso "comme il faut", a sexualidade feminina no interior. No meio daquele divórcio, a vida passa, a vida acontece... Um pai e uma filha a amarem-se com violência. É provavelmente esse o gesto de sofisticação deste olhar sobre corpos em transe.
Outra maneira de aderir à disposição errática do filme é ver nele uma reflexão sobre desejo e poesia, coisas que não rimam mas que aqui estão ligadas, sobretudo porque estão todos em crise, inclusive o gato que chega a atacar a filha mais nova. Por isso mesmo, Eva olha para o mundo dos adultos que tem à sua frente e tenta encontrar respostas: o que fazer do aborrecimento do mundo da mãe? Como gerir a vida de poesia frustrada do seu pai e dos amigos que parecem ainda adolescentes? Mais vale amar o gato? O melhor é pensar que Maurel não quer dar lições de vida, apenas observar.
Boa surpresa da Costa Rica, mesmo que, muitas vezes, sentimos que o filme já não tem mais nenhum trunfo para oferecer.
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