Um velho do Restelo

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"Mísera sorte! Estranha condição!"
Camões, Os Lusíadas, IV - 104

Será o declínio que vem com a idade que nos torna pessimistas? Ou a consciência de a realidade se ter afastado vertiginosamente das nossas expetativas? Todas as gerações se puseram esta questão a si próprias, mas o que acontece agora é que acelerou incomparavelmente a velocidade da História e nós nos vamos sentindo mais e mais "sem teto entre ruínas" (Raúl Brandão).

Os sinais que o mundo nos manda vemo-los cada vez mais com temor e sem esperança. Não conseguimos entrever, nas ruínas de ideias e ideais que habitamos, o anúncio do inesperado, que sempre chega e tudo transforma.

Os velhos do Restelo como eu não esquecem a alegria de um governo que considerava o empobrecimento dos portugueses como um momento necessário para o crescimento do país ("os portugueses estão pior, mas Portugal está melhor") e vivia com entusiasmo a nossa e sua humilhação pelos terceiros oficiais de Finanças da troika que sobranceiramente nos visitavam. Eles traziam consigo o "Homem Novo" e mandavam "um povo piegas", que vivera até ali em permanente "regabofe", para fora da sua "zona de conforto" e para a dureza, sem proteções nem abrigos, do mercado todo poderoso.
Consideram os velhos do Restelo como eu uma ingenuidade perigosa, ou uma interessada má fé acreditar que entregar todos os recursos do país ao critério dos privados nos viria trazer a prosperidade geral. É que não esquecem aqueles que jogaram os ativos da economia do país no casino financeiro, para depois da falência universal irem pôr os seus pés de meia no recato dos paraísos fiscais, deixando os contribuintes (nós) a pagar os estragos. E não os surpreendem as revoltas cegas da extrema direita, que vão alastrando quanto mais se vincam e aprofundam as desigualdades.

Meu saudoso primo Leonardo Ferraz de Carvalho, que não era um homem de esquerda, definiu, lá pelos anos noventa, o conceito de "tansos fiscais". Tansos somos nós, os piegas que vivem do seu trabalho e não conseguem pagar os impostos na Holanda ou evadi-los, num processo de otimização fiscal, pelas várias zonas francas deste mundo.

Nada nos dá sossego. Um interessante analista político, Bruno Maçães, regozija-se com a perspetiva de uma Europa em que "ucranianos e polacos serão maioritários", sem dúvida por considerar desejáveis para todos os europeus os modelos políticos da Ucrânia e da Polónia. Já repararam que de repente deixou de se falar em "democracias iliberais"?

Mas como posso eu, com este sol e este mar, com esta permanente promessa de felicidade que o verão traz (esqueçamos, por um momento, tudo o que por aí arde) comprazer-me num pessimismo que não vejo os meus filhos e os meus sobrinhos, com diferentes posições políticas e experiências do mundo, partilhar? Não será este azedo pessimismo exclusivo fruto do avançar da idade e do estreitar das ilusões? Não estaremos a medir a realidade pelas nossas antigas grelhas mentais, caindo na mesma armadilha desses eternos discípulos de Milton Friedman que nos assombram? Keynes dizia que o nosso drama vinha de analisarmos a realidade presente com os mesmos conceitos em que fomos formados no passado, o que levaria os decisores invariavelmente a tomar decisões desfasadas das necessidades históricas do momento. Os mil e um discípulos tardios da senhora Thatcher, que nos enchem os ouvidos todos os dias, deveriam pensar nisto. E a nossa esquerda também.

O mar e o sol brilham mais intensamente para os novos. E o inesperado, para o bem ou para o mal, virá para eles.


Diplomata e escritor

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