Um tributo à tolerância e à fraternidade em Almada
Nathan chega de mais uma viagem. Traz camelos, especiarias e um abraço saudoso à família. É um comerciante rico, ponderado e generoso a quem todos chamam sábio. Mas mais do que sábio, Nathan é, sobretudo, tolerante. Tolerância, a palavra urgente na espuma dos dias e o mote para a nova criação do Teatro Municipal Joaquim Benite, em estreia hoje à noite, em Almada.
O texto do filósofo e teólogo iluminista alemão Gotthold Lessing - publicado em 1779, um dos clássicos da dramaturgia mundial e obra fundamental do Século das Luzes - é um tributo à tolerância, pela primeira vez levado à cena em Portugal. Em Nathan, O Sábio, Jerusalém é o umbigo da Humanidade, num arremesso frontal contra o fanatismo religioso. A palavra é o elemento vivo do espetáculo que acolhe um cenário sem artifício nem ornamento, só com as pinturas de Pedro Calapez em pano de fundo, e um tabuleiro de xadrez. O encenador e diretor artístico Rodrigo Francisco dirá, a seguir ao ensaio de imprensa na última quarta-feira, que ainda pensou retirá-lo, mas acabou por lhe conceder um lugar importante. "É um objeto cheio de significado, até porque representa as negociações entre as civilizações e os seus avanços e recuos".
A ação decorre na Jerusalém do século XII, o palco para a reflexão sobre as relações - e a origem comum - das três religiões do Livro: judaísmo, cristianismo e islamismo. Maria Rueff e Luís Vicente encarnam a história passada, nesta Jerusalém acabada de conquistar pelo sultão muçulmano Saladino (João Tempera), e onde vivem Nathan (Luís Vicente), judeu, e a sua filha adotiva, a cristã Recha (Leonor Alecrim). A jovem acaba de ser salva de um incêndio por um jovem cruzado (André Pardal) que a pede em casamento. Mas, parece que nem o tolerante Nathan pode aceitar essa união. O porquê reside no clímax da peça, onde, afinal, os laços do amor e da fraternidade serão a origem para todas as religiões do mundo. Ou deveriam ser?
A resposta chega com Maria Rueff, ainda vestida de ama Daja mas já sem o imponente toucado, que aceitou com um "gosto especial" o convite da companhia de Joaquim Benite, "onde se sente em casa". A atriz que regressa agora às tábuas do teatro destaca a urgência da peça. "É um tema absolutamente importante e infelizmente, muito atual, sobretudo agora nestas intolerâncias dos refugiados, do medo que se sente, acho que faz todo o sentido se caminharmos para alguma paz, tolerarmos e aceitarmos as diferenças de uns e outros e tentarmos conviver com elas", declara.
"Nathan é o contrário de Trump"
Civilizações, povos, crenças, fé e destino, a reflexão tudo abarca ao fim de duas horas, numa passagem de testemunho a viva voz, onde deve restar o ser tolerante, pacífico e igual. "A grande importância do teatro é fazer refletir e eu sinto-me muito orgulhosa de poder servir esta amostragem de irmos todos para casa pensar", diz a atriz. Quanto à sua personagem, a própria Rueff, que se assume como católica, aceita despi-la de preconceito. "É aquela cristã nada tolerante, espelha o problema das religiões e vive naquele ferrete de achar que está em pecado por ter criado uma menina cristã dentro duma casa judia e ainda por cima, sem religião nenhuma", observa. E os Nathans de hoje? "Poderia ser o Papa Francisco, ou Nelson Mandela ou Teresa de Calcutá, figuras que no fundo apelam à união e ao amor, independentemente do credo", considera Rueff.
Já o ator Luís Vicente aceita que o seu personagem seja "o contrário do Trump". Por seu lado, Rodrigo Francisco encara a peça como um poema dramático, já encenado na América, a seguir ao 11 de setembro, e muito necessário nos dias de hoje. "É muito importante para as pessoas esta oportunidade de se confrontar com textos destes para se poderem distanciar daquilo que é contemporâneo e urgente", finaliza o encenador.