Um terrorista ou um especialista em demónios de fato feito à medida?
Foi em abril. A conversa aconteceu à mesa do café, no Teatro da Comuna, Lisboa, com João Mota a planear a festa dos 45 anos da companhia e os escritores Mia Couto e José Eduardo Agualusa a combinarem escrever uma peça para a abertura da temporada. Não era a primeira vez que o faziam. O moçambicano e o angolano, amigos de longa data, já tinham trabalhado juntos em duas peças, por encomenda, do Trigo Limpo Teatro ACERT, e tinham "excelentes memórias dessa experiência", como conta Agualusa no texto que escreveu para o programa. "Desta vez fechámo-nos (ou abrimo-nos) durante duas semanas, na imensa varanda de uma vivenda, com vista para o rio Umbeluzi, a poucos quilómetros de Maputo. Um de nós trouxe um recorte de um jornal português com a notícia da prisão, em Lisboa, de um jovem angolano acusado de ligações ao terrorismo islâmico. Aquela notícia foi o princípio de tudo."
Enquanto isso, em Lisboa, o encenador "não sabia nada", nem sequer o tema da peça. Confiou nos autores e não se arrependeu. "De cada vez que leio o texto ou assisto a um ensaio vou descobrindo coisas novas", diz João Mota sobre O Terrorista Elegante. "É uma peça muito bem urdida, uma farsa dramática mas com um lado poético muito grande e inquietante."
O Terrorista Elegante é Charles Poitier Bentinho (interpretação de Miguel Sermão), é poeta romântico e especialista em espíritos, capaz de perceber das pessoas aquilo que elas não querem mostrar, irmão dos pássaros com quem gosta de conversar e de voar. Uma personagem que facilmente poderíamos encontrar num livro de Mia Couto ou de Agualusa. De poucas palavras, mas certeiras. Com fato feito à medida pelo melhor alfaiate de Lisboa ou comprado nas lojas de Paris. "O respeito começa na apresentação" - é a sua máxima.
A apresentação, porém, não lhe serve de muito quando, apanhado no meio de uma confusão, é preso no aeroporto por suspeita de terrorismo. Encontramo-lo já na sua cela, a ser interrogado pelo inspetor Laranjeira (o ator Virgílio Castelo), pela agente Laura (Ana Lúcia Palminha) e por Maggie (Rita Cruz), uma agente especial da CIA enviada de propósito a Portugal para acompanhar o caso. Mas será o prisioneiro realmente culpado? Ou tratar-se-á apenas de um problema de comunicação: assim como as "minas" a que Bentinho se refere são, afinal, "meninas" e não apresentam qualquer perigo para o mundo mas apenas para o seu frágil coração.
O humor aparece, quase sempre fruto dos desentendimentos linguísticos ou do contraponto entre o africano e o ocidental. O sagrado e o profano misturam-se, o prazer da vida e o medo da morte confrontam-se. Agualusa explica que, ao ler a tal notícia no jornal, perceberam que havia ali "todo um complexo processo de equívocos que seria interessante explorar: o clima de medo que se instalou no mundo inteiro e que parece justificar as piores loucuras; a necessidade de invenção do inimigo, porque o inimigo é difuso e distante, mas é preciso degolar e apresentar cabeças; a persistente arrogância imperial do ocidente em relação a África; a arrebatada relação de amor-ódio de Portugal com as suas antigas colónias, etc."
Estas são algumas das inquietações em cena numa peça que lança um olhar muito crítico sobre o sistema judicial e a necessidade de sacrificar a verdade em prol da eficácia: "Ninguém, é tão inocente que não possa parecer culpado", diz-se a certa altura. "É tão fácil prender inocentes", corrobora o encenador, questionado: "Que mundo é este em que vivemos?" Sem se importar com injustiças, o inspetor converte-se aos fatos por medida e dança ao som de Papa Wemba, enquanto Bentinho embarca para Guantánamo vestido de cor de laranja. Mas há, apesar de tudo, uma esperança. Em todo mundo há céu, em todo o céu há pássaros. E os pássaros voam, livres. No final do ensaio, João Mota sai da sala escura a repetir a frase que mais o prendeu desta vez: "A culpa é a pior das prisões".